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Brasil: onde crime é tratado como acidente e providências só vêm depois

Não é a primeira vez que um crime, como o de Brumadinho, é tratado como acidente no país: 'Poderia ter sido eu'

Por Isabella Otto Atualizado em 28 jan 2019, 19h33 - Publicado em 28 jan 2019, 16h51

“Mariana tentou esquecer a história do tal fantasma, pelo menos não ficar lembrando disso o tempo todo, mas estava difícil”. Esse trecho foi retirado do livro Mariana, escrito por Ana Rapha Nunes e publicado em 2016 pela Editora Inverso. A escritora se baseou na trágica história de Mariana para escrever a obra, que é dedicada aos moradores da região “que viram suas vidas destruídas da noite pro dia e hoje tentam recomeçar”. No dia 5 de novembro de 2015, mais de 30 milhões de metros cúbicos de lama deixaram o distrito de Bento Rodrigues, em Minas Gerais, soterrado. 19 pessoas morreram, mais de 500 mil vidas foram afetadas em mais de 40 cidades e o Rio Doce, a mais importante bacia hidrográfica da região, continua sofrendo hoje os impactos do desastre ambiental. Ou seria crime?

Reprodução/Reprodução

Na época, a empresa Samarco, controlada pela Vale e responsável pela Barragem de Fundão, tratou o incidente como um desastre. O Ministério Público, contudo, o classificou como crime. Pouco mais de três anos se passaram e, de novo, uma barragem se rompeu em Minas Gerais, dessa vez no município de Brumadinho. Foi a vez do Rio Paraopeba ser afetado, assim como a vida de milhares de pessoas. As buscas pelos desaparecidos continuam e os bombeiros estão se baseando agora pelo cheiro de carne humana para localizar os corpos. “Procuramos sobreviventes, sempre. Mas aqui, a verdade é que estamos nos guiando pelo cheiro dos corpos ou pelo o que conseguimos ver”, disse um dos brigadistas. Os parentes e amigos dos desaparecidos seguem sem notícias, e talvez essa seja a parte mais agoniante e injusta: não saber.

É difícil falar em justiça quando, no último dia 25, por volta das 12h, uma barragem da Mina Córrego do Feijão se rompeu, também controlada pela Vale. A lama soterrou funcionários, moradores da região, ônibus, locomotivas, carros, animais, pessoas, plantas, brinquedos, alimentos, água. A lama soterrou sonhos e vidas. Não a mesma lama, mas uma bastante parecido com aquela que protagonizou o maior crime ambiental da história do Brasil em 2015. Porque não dá para falar em acidente quando sabíamos que algo poderia ter sido feito. Não dá para falar em acidente, porque acidente é algo inevitável, que acontece de surpresa, uma tragédia da vida. A barragem que se rompeu em Brumadinho foi tudo, menos uma surpresa.

De acordo com o relatório mais recente da Agência Nacional de Águas, 45 barragens brasileiras correm risco de rompimento. Algumas têm um nível de preocupação e destruição maior que outras, mas todas essas 45 estão dando um aviso de que algo ruim pode acontecer, que as coisas não estão tão seguras assim, que é um crime deixá-las do jeito que estão. O que é feito? Gostaríamos de dizer que atitudes de planejamento são realizadas, mas tudo não passa de atitudes emergenciais, que são tomadas quando o mal já aconteceu. “Nada mudou”, disse a moradora de Bento Rodrigues Ediléia Márcia dos Santos em entrevista ao Jornal Estado de Minas. Monique Rodrigues, pescadora de uma das regiões afetadas pelo crime de Mariana, concorda. “As empresas não aprenderam e vão continuar errando se não forem punidas”, disse a moradora ao site Gazeta Online.

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Não é que nada tenha sido feito, mas diante do tamanho do crime, são medidas muito pequenas e paliativas, na maioria dos casos. O que deveria ter sido feito não foi. Do que adianta ter uma fiscalização se nada é feito com os dados levantados? O que é possível fazer com essas 45 barragens em risco? O que será efetivamente feito? Ou daqui três anos teremos um novo crime ambiental para chamar de desastre ou acidente?

 

A DOR DE NÃO SABER
No mais recente balanço divulgado pela Defesa Civil, subiu para 60 o número de mortos na tragédia de Brumadinho. A dor de perder alguém querido é imensurável, mas a dor de não saber talvez seja ainda mais cruel. Wederson Chagas trabalha no local em que tudo aconteceu, mas não estava na escala da última sexta. “Meus amigos e parentes estavam trabalhando no local. Eu sou maquinista de trem e também trabalho lá. Não tenho notícias dos meus primos nem dos amigos. Notícias aqui só pelo WhatsApp. A cidade aqui é pequena e cada um tem um monte de conhecidos desaparecidos. Está um clima de angústia e tensão. Se eu estivesse trabalhando naquele local na sexta, provavelmente seria um dos desaparecidos. Me coloco na pele do maquinista meu amigo que foi soterrado. Podia ter sido eu“, desabafa.

Jennyfer Kristy, de 20 anos, faz parte de uma ONG de proteção animal de Betim, cidade próxima a Brumadinho. A jovem conta que os bombeiros estão dando prioridade para o resgate de pessoas, mas que uma equipe da Luisa Mell foi liberada para ajudar nas buscas por animais. “Meu pai tem um amigo que trabalhava lá. A gente ainda não sabe o que aconteceu com ele. Estamos tentando saber de algo”, disse.

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“É um momento de dor pelo lado desumano e cruel do homem(…) Quantas vidas estão perdidas? Isso nos faz sofrer e pensar: ‘Até quando?’. Até quando a negligência, a estupidez do homem, vai causar tanto mal a nossa Terra?”, questionou Zilda Cabra, da ONG Sociedade Protetora de Animais de Betim, da qual Jen faz parte. Se levarmos em conta o número de perdas humanas e de animais, o que aconteceu em Brumadinho já pode ser considerado o maior crime ambiental da história – mesmo que a área afetada e a quantidade de lama tenham sido menores que as de Mariana.

 

A PERGUNTA QUE NÃO CALA
Até quando? É isso o que os brasileiros se questionam há tempos. O que é possível fazer com as barragens que, mesmo sendo classificadas como de risco baixo, ainda apresentam algum perigo? É sabido que as barragens de minério na Bahia receberão uma fiscalização maior após o crime de Brumadinho, mas o que será feito com essas informações?

A gente não pode esquecer. A gente não pode deixar que esqueçam. Mas são tantos acontecimentos ruins que é difícil mesmo supervisionar tudo – até porque as pessoas que deveriam estar supervisionando estão claramente fazendo outra coisa. O quê? Também gostaríamos de saber. “Acredito que a culpa seja da Vale mesmo, pois essa barragem é antiga e a empresa teve muitos anos para retirar a área administrativa, o restaurante e as oficinas de onde estavam – no subsolo. Muita gente está culpando o Governo ou o prefeito de Brumadinho. Não enxergo dessa forma, pois a Vale tinha laudos que comprovavam a estabilidade da barragem(…) Triste também é saber que um dos meus amigos ferroviários estava aniversariando na sexta-feira, e o outro havia comemorado dois dias antes“, lamentou Wederson Chagas.

Barragens rompidas, incêndios em boates, assassinatos de ativistas… Tudo isso são crimes, não acidentes. Providências poderiam ter sido tomadas antes, por que não foram? Por que continuam não sendo?

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