Sem fiscalização, brancos se declaram negros e viram ‘cotistas’
Faz anos que candidatos negros e da rede pública de ensino são prejudicados por pessoas que usam erroneamente o sistema de cotas para se beneficiar.
Em fevereiro, uma petição criada por Amanda Cordeiro começou a circular na internet. A jovem queria reunir assinaturas e encaminhá-las para a USP (Universidade de São Paulo), para que a instituição criasse uma comissão que avaliasse o ingresso de cotistas. Amanda, que é negra, perdeu sua vaga para uma pessoa branca que se autodeclarou negra no vestibular. Ela descobriu a fraude ao analisar a lista de aprovados. A estudante percebeu que não estava sozinha e que nada estava sendo feito. Na verdade, nada continua sendo feito. Pelo menos, não por parte da maioria das instituições de ensino.
Em 2012, a Lei de Cotas, nº 12.711, foi aprovada, reservando um percentual das vagas para estudantes da rede pública e outro para negros, pardos e indígenas. Desde que foi criada, há denúncias de fraude. Em 2014, o Ministério Público avaliou mais de 40 suspeitas de fraudes na UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). O cenário se repetiu nos anos seguintes, em outras instituições públicas. “De nada adianta ter a cota se ela não é fiscalizada. Na prática, o que vemos é a diminuição de estudantes negros, pardos e indígenas nas universidades. O racismo existe e a cota é apenas uma medida paliativa. Eu, como negra, não quero que ela exista para sempre. Até porque minha cor não determina meu nível de inteligência. Mas ela ainda se faz necessária”, garante Amanda.
Enquanto as fraudes continuarem ocorrendo, jovens que realmente necessitam do sistema de cotas nunca terão acesso à universidade. Amanda Cordeiro sabe o que é sentir na pele o racismo. A pessoa branca que tirou o seu lugar, não. Nem a outra garota branca que conseguiu uma vaga como cotista em Filosofia. Ou aquele menino branco que agora cursa medicina por causa das cotas. “Essas pessoas ainda têm coragem de dizer que sofrem racismo! É pura falta de caráter. Todos poderiam ter entrado por ampla concorrência, tranquilamente”, diz a estudante.
A CAPRICHO entrou em contato com o Ministério da Educação e descobriu que, ao contrário do que muitas universidades alegam, elas têm total autonomia para cancelarem uma matrícula caso uma fraude seja denunciada. “De acordo com a Lei, essa verificação fica a cargo das universidades e não do MEC(…) Assim, a instituição, detentora da vaga, tem autonomia para aplicar a lei e cancelar a matrícula do estudante que prestar informações falsas. Ao MEC, cabe o acompanhamento do cumprimento do quantitativo da reserva de vagas”, informou Emmanuel Macedo, coordenador e assessor de imprensa do Ministério da Educação.
Por questões legais, não vamos revelar os nomes de todas pessoas que cometeram a fraude e das que foram afetadas por ela no último vestibular da USP, mas Amanda Cordeiro diz que a petição online já tem mais de duas mil assinaturas e que ela recebe mensagens de outros estudantes que fizeram denúncias a uma das mais prestigiadas universidades do Brasil. “A universidade só pediu desculpas e matriculou todos os alunos. Eles vão poder cursar suas graduações mesmo tendo tirado o direito de quem deveria estar lá”. A CAPRICHO também entrou em contato com a USP e recebeu a mesma mensagem que Amanda obteve: “não emitimos uma nota oficial sobre o assunto, pois não houve nenhuma denúncia”.
Estranho? Duvidoso? Revoltante? Sim. A USP, entretanto, pode estar esperando uma denúncia formal, vinda da Justiça, para tomar uma atitude. O MEC, porém, garante que isso não é preciso. “Eles estão fugindo porque sabem que matricularam pessoas que não correspondem à Lei de Cotas. Vou fazer um boletim de ocorrência contra a universidade na delegacia. Tenho provas e mais provas. Também fiz um site simples para receber denúncias de forma anônima”, diz Amanda, que está sendo perseguida nas redes sociais por sua atitude. Estaria ela sendo perseguida pelas mesmas pessoas que fraudaram o sistema de cotas?
Amanda Cordeiro e tantas outras pessoas prejudicadas pedem que a USP e outras universidades públicas façam como a UFU (Universidade Federal de Uberlândia), que criou uma comissão avaliadora para analisar as matrículas. Muito ainda se é discutido, inclusive pelas reitorias das instituições. Pode uma pessoa de pele branca se autodeclarar negra porque sua bisavó era afrodescendente? Será que ela sofre racismo e tem as mesmas dificuldades que uma pessoa de pele negra? Comissões são legais e necessárias porque existem pessoas que se aproveitam da falta de fiscalização para distorcer uma Lei que deveria ser positiva para todos. Talvez seja interessante criar também uma comissão para analisar o bom senso e a cara de pau dos seres humanos.