Pressão por filtros, looks e likes: Como que é ser menina hoje no Brasil

Mesmo em meio à crescente de direitos das meninas e mulheres dos últimos 10 anos, elas ainda vivem sob pressão e violência — e têm muito a dizer sobre isso.

Por Mariana Gonzalez, especial para a CAPRICHO 31 ago 2025, 06h00
O

ano é 2015. O Brasil é presidido por uma mulher, e o Facebook é a rede social mais acessada no país, seguida pelo X, que ainda se chamava Twitter. Em março, foi sancionada a Lei do Feminicídio. Em outubro, o Enem fez menções à igualdade de gênero, citando Simone de Beauvoir, e elegeu como tema da redação da prova “a persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”. Ao longo de todo o ano, as redes sociais foram inundadas por relatos fortíssimos de assédio, estupro e outros tipos de violência de gênero, a partir das hashtags “meu primeiro assédio” e “meu amigo secreto”; o movimento foi tão grande e tão importante que inspirou relatos nos Estados Unidos e na Europa. Neste cenário, há uma década, nasce a chamada quarta onda do feminismo no Brasil; ou, basicamente, o feminismo como o conhecemos hoje. De lá para cá, ganharam corpo discussões como o direito ao aborto, a representatividade de pessoas LGBTQIA+ e a participação de mulheres na política – nos últimos dez anos, o número de mulheres na Câmara dos Deputados quase dobrou. 

A despeito de uma verdadeira primavera feminista no Brasil daquele momento, pouca coisa mudou na prática para as meninas e jovens mulheres brasileiras. Meninas de 12 a 18 anos continuam na mira da violência. Se, por um lado, você aí do outro lado e suas amigas cresceram em meio a discussões sobre igualdade de gênero e estão mais empoderadas para exigir seus direitos, de outro, é sabido que estão também mais expostas à pressão estética e à violência de gênero facilitada por ela, a tecnologia. A redação da CAPRICHO estava com uma pergunta presa na garganta e buscou respondê-la: afinal, como é ser menina no Brasil hoje?

Vivemos em um país enorme, da dimensão de um continente, e também muito diverso, que abriga múltiplas culturas, às vezes dentro da mesma cidade. A desigualdade social é gigante. Embora brasileiras de 12 a 18 anos tenham contextos muito diferentes entre si, a depender de fatores como classe social, raça, sexualidade e até a composição de suas famílias — se têm muitos irmãos ou são criadas por mães solo, por exemplo — há algumas questões comuns que elas enfrentam em 2025. Para responder a essa pergunta, CAPRICHO encarou uma série de entrevistas com adolescentes brasileiras e com profissionais que estão de olho nessa parcela da população, que corresponde a quase 7% de todos os brasileiros, viu? 

Na mira da violência

O assédio é um tipo de violência que pode assumir diferentes formas, a depender do contexto. Desde as conhecidas cantadas desagradáveis, até olhares e toques indesejados, perseguição na internet, todo tipo de comportamento ameaçador ou perturbador, sim, é assédio. E, a depender do contexto, ele também pode ter resquícios de racismo, homofobia e transfobia, por exemplo. Fato é que, de uma forma ou de outra, o assédio foi um dos temas que mais apareceu nas entrevistas feitas pela reportagem da CAPRICHO às personagens.

Continua após a publicidade

Juliana*, por exemplo, narra o dia em que foi apalpada durante um bloco de carnaval, aos 14 anos; também não é raro que ela seja alvo de assédio no trajeto de casa para a escola, nas ruas de Heliópolis, na periferia de São Paulo. “São olhares, comentários. Quando acontece, sinto vontade de xingar, mas quase sempre fico quieta por medo”, conta. A mais de 3 mil km de distância dela, Ana* também enfrenta assédio no caminho para a escola, em Rio Branco (AC). Ela estuda em um colégio militar e reclama de ter que usar uniformes diferentes dos meninos – enquanto eles usam calça e sapatos baixos, as meninas devem vestir uniforme composto por saia e salto alto: “Além de atrapalhar os nossos movimentos e machucar os pés, a farda feminina é mais justa e eles ficam olhando”.

Para adolescentes LGBTQIA+, o assédio ganha contornos também de homofobia e transfobia. “Uma vez, voltando para casa à noite, passaram de carro e jogaram ovos em mim e nos meus amigos. Foi horrível, fiquei morrendo de medo”, lembra Gabriela*, que é uma adolescente trans e acredita que o ataque foi motivado justamente por transfobia. Por namorar outra garota, Juliana também sente tensão ao andar de mãos dadas com a namorada — elas nunca foram alvo de nenhuma situação explicitamente homofóbica, mas se sentem inseguras com alguma frequência. “Duvido que uma pessoa heterossexual se sinta assim”, fala. 

Nas escolas, a violência assume um caráter emocional. A maioria dos episódios registrados, segundo o Ministério de Direitos Humanos e Cidadania, não envolve brigas ou agressões físicas, mas bullying, ameaças, constrangimentos e assédio moral e sexual. Entre 2013 e 2023, os casos de violência deste tipo cresceram 254%. E, na internet, o cenário pode ser ainda mais perigoso: é lá que nasce e cresce a chamada “machosfera”, ou seja, uma comunidade de criadores de conteúdo misóginos, que pregam o desprezo e o tratamento violento contra as mulheres, além de reforçar estereótipos de gênero. Uma pesquisa feita em 2024 pelo NetLab, da Universidade Federal do Rio de Janeiro com o Ministério das Mulheres, identificou um aumento de 88% de vídeos desse tipo a partir de 2022. 

Continua após a publicidade

Na prática, como explica a juíza Vanessa Cavalieri, da Vara da Infância e Juventude, meninos começam a ser expostos a esse tipo de conteúdo machista muito cedo, a partir dos 11 anos, e isso faz com que eles cresçam achando esse tipo de discurso normal. “Com a internet, um menino que acha normal desprezar mulheres encontra outros que acham o mesmo e eles criam uma comunidade. Então, o que antes seria só uma pessoa numa escola, pensando em fazer algo errado, se torna um grupo inteiro pensando em fazer o mesmo”. A psicanalista Carolina Delboni explica que, na prática, esse tipo de conteúdo instiga meninos a praticar violência contra as meninas, aumentando a incidência de práticas como pornografia de vingança, nudes fakes criados com inteligência artificial e cyberbullying – trata-se da “violência de gênero facilitada pela tecnologia”. 

Das cinco adolescentes que entrevistamos, quatro disseram já ter sofrido algum tipo de violência nas redes sociais. Taís*, por exemplo, foi perseguida por homens mais velhos, desconhecidos, em seus stories do Instagram; Gabriela* recebeu dezenas de comentários transfóbicos quando postou um vídeo falando sobre sua transição de gênero no TikTok. Hoje, as duas têm as redes sociais privadas somente para conhecidos. O caso relatado por Juliana foi ainda mais grave: há alguns anos, quando mudou de escola, passou a receber mensagens anônimas com ameaças e agressões sexuais de um número desconhecido: “Como eu havia acabado de entrar na escola, pensei ser alguém da minha sala mandando mensagem. Mas era uma pessoa, provavelmente um homem, que sabia onde eu estudava e começou a me mandar fotos pornográficas, perguntando se eu gostava daquilo. Fiquei em choque. Eu era bem mais nova e fiquei muito constrangida, com medo mesmo. Apaguei as mensagens, bloqueei, contei para os meus pais e fomos à delegacia, mas o delegado não aceitou fazer a denúncia. Esse número continuou mandando mensagens, mesmo após bloqueá-lo, e só parou quando troquei de número”.

A decisão de pedir ajuda ainda é exceção: Carolina Delboni conta que, embora a gente viva uma era de muita informação, a maioria das meninas ainda não sabe como denunciar ou têm medo de contar para os adultos. “Elas levam a situação como parte da rotina, tentam lidar com aquilo sozinhas, e essa violência piora a saúde mental e física delas, além de impactar negativamente o desempenho na escola”, alerta a psicanalista. “As meninas só estarão completamente livres quando viverem num mundo sem violência de gênero”, completa Débora Lira, especialista em políticas públicas e gênero da Serenas, organização voltada à prevenção da violência.

Continua após a publicidade

Filtro, maquiagem e muita pressão

“Eu não sou de me maquiar, acho desconfortável usar maquiagem o tempo todo, mas sinto uma pressão para usar pelo menos rímel e blush na escola. E também para usar peças de roupa mais femininas do uniforme, como short e legging. Sinto que, dessa forma, eu sou levada mais a sério pelas pessoas. Sonho em ter mais liberdade, não me preocupar tanto com a minha estética”. Quem diz isso é Gabriela, de 17 anos. Por ser uma menina trans, ela se sente pressionada a ir para a escola o mais feminina possível para ter sua identidade de gênero respeitada por colegas e professores, mesmo sem gostar de usar maquiagem. Mas a pressão estética atinge todas as meninas, em maior ou menor grau. Segundo a pesquisa Doce Pela Autoestima, de 2023, 97% das adolescentes entre 10 e 14 já foram expostas a conteúdos tóxicos de beleza nas redes sociais; não por acaso, aos 13 anos, 84% das brasileiras já aplicaram um filtro ou usaram um aplicativo para mudar sua imagem em suas fotos.

+_CHEGOU ATÉ AQUI? Leia a versão completa do texto na edição impressa de JULHO/25 de CAPRICHO no GoRead, a maior banca de revistas digital do Brasil, ou compre na banca mais próxima da sua região.

Publicidade