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A vida de transexuais pretos no país mais transfóbico e racista do globo

Marginalizados, transexuais e travestis negros são os mais assassinados no Brasil: "Sinto que posso virar estatística e a todo momento fico pensando nisso"

Por Isabella Otto Atualizado em 29 jan 2021, 11h13 - Publicado em 29 jan 2021, 11h01

Qual é seu maior medo? Ser diagnosticada com alguma doença? Viajar de avião? Não conseguir passar no vestibular? Repetir de ano? Se você concordou com uma ou mais dessas respostas, provavelmente faz parte de uma maioria que, felizmente, pode sair às ruas sem medo. Enquanto isso, transexuais e travestis não podem nem “se dar ao luxo” de ter essas inseguranças, porque muitos desses espaços ainda hoje a eles são negados.

Giovanna Heliodoro, Odara Soares e Stefan Costa
Da esquerda para a direita, Giovanna Heliodoro, Odara Soares e Stefan Costa Juliana Dias/CAPRICHO

O Brasil lidera o ranking mundial de países que mais matam pessoas trans e travestis no mundo. A cada 48h, uma mulher trans ou travesti é assassinada. O número de transgêneros mortos no primeiro semestre de 2020 foi maior que o registrado no mesmo período de 2019, segundo levantamento da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais). Vale lembrar que, mesmo com o cenário de isolamento social, causado pela pandemia de coronavírus, o número cresceu. O Brasil também é um dos países que mais consome conteúdo pornográfico de trans e travestis na internet. “Perdi as contas de quantas vezes fui agredida, levei garrafada, pedrada, facada”, conta Odara Soares, microempreendedora e criadora de conteúdo. Ela lembra ainda que foi há pouquíssimo tempo que trans e travestis puderam sair à luz do dia: “Só era nos permitido sair à noite. Ainda de dia, aqueles que se arriscam, sabem o quanto a sociedade sabe ser agressiva e cruel com nossos corpos.”

A transfobia no país é potencializada pelo fator raça. Para a historiadora, social media e apresentadora Giovanna Heliodoro, falar sobre mortes de transexuais e travestis é também falar sobre o genocídio da população preta. “A vivência de trans e travestis pretas é diferente da de trans e travestis brancas. Quando olham pra gente, dizem que não basta ser preta, tem ainda que ser trans. E esse processo de estar nos lugares e ocupá-los incomoda muito. Ser LGBTQIA+ preta incomoda. É importante fazer um recorte pra gente lembrar de raça, classe e gênero. Falar de transfeminicído é falar sobre o extermínio da população negra e, quando vamos pesquisar sobre esses assassinatos, percebemos que eles são mais complexos ainda. Porque não basta uma bala para nos matar, tem que ser uma série de balas. Não basta um atropelamento, tem que ser uma série de atropelamentos. Isso mostra como as pessoas querem desumanizar e exterminar a gente“, explica.

 

No Brasil, 82% das pessoas transexuais assassinadas são pretas e 97% delas são mulheres. A marginalização na sociedade e a não integração delas à instituição da família as fazem encontrar na prostituição sua maior e às vezes única fonte de renda. “Temos uma hierarquia de opressão, de fobias, e isso potencializa a violência. Eu sempre me dediquei a estudar muito, mas infelizmente as oportunidades que chegaram até mim foram muito poucas, e eu percebi que isso foi consequência do fato de eu ser travesti e preta”, afirma Giovanna. Stefan Costa, bacharel em Direito e youtuber, destaca a necessidade da inserção de transexuais e travestis no mercado de trabalho: “Quando pensamos nessas pessoas, pensamos nelas se prostituindo, mas nem todas que estão ali querem estar ali. É porque elas não têm oportunidades”.

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Stefan é um homem trans, assim como foi Demétrio Campos que, em maio, no último Dia Mundial de Luta Contra a LGBTfobia, morreu por suicídio. O caso do jovem mostra como a violência contra trans e travestis é direta e indireta, marcada por microagressões diárias, como aquela “piadinha” que você faz ou aquele comentário preconceituoso que deixa na rede social. “O Demétrio foi uma das maiores referências que eu tive enquanto masculinidade preta. Ver um homem preto, trans, que por diversos momentos foi oprimido e hostilizado, tirar sua vida, demonstra que matar pessoas trans não é um processo que acontece apenas pela bala. Você mata transexuais diariamente por meio de suas narrativas“, diz a historiadora Giovanna.

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A dívida histórica para com os corpos de pessoas trans é enorme e, mais uma vez, potencializada pelo racismo estrutural. “As pessoas trans negras são sempre lidas como inferiores, a história se repete. Somos as menos bonitas, as menos femininas e até as menos trans, na boca de alguns. Nossa sociedade é extremamente racista e ela sabe disso, embora as pessoas não estejam prontas pra essa conversa”, lamenta Odara, que relembra que, recentemente, pareceu que todo mundo tinha passado a se importar com vidas pretas, com movimentos como o do #BlackLivesMatter. Na prática, contudo, será que essas pessoas se lembram de que vidas de transexuais e travestis negros também são vidas negras? Ou a discussão, mais uma vez, cai no padrão heteronormativo? “Quando eu saio na rua, tenho a impressão de que estou numa fase de videogame, com aquela adrenalina e sensação de não saber o que vai acontecer, mas, independentemente disso, ter que estar preparada. É exatamente assim todos os dias”, conta a criadora de conteúdo. Para Stefan, promover o debate é extremamente necessário e salva vidas: “A raça vem antes do gênero e nossas estatísticas dizem muito sobre isso, quando 80% das pessoas que sofrem transfobia e são assassinadas no Brasil são pretas“.

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Mesmos em dias e meses que promovem a diversidade, tendemos a repetir padrões. Já reparou como são sempre os mesmos rostos que estão à frente de projetos idealizados por grandes empresas? O Mês do Orgulho LGBTQ+, por exemplo, acaba sendo pautado em cima do orgulho gay, pela lógica dos homens. O padrão europeu também acaba sendo reproduzido. “Quando a gente só escolhe as mesmas pessoas [para falar], realmente fica parecendo que falta representatividade dentro da comunidade”, explica Stefan. Isto, contudo, não é verdade. A representatividade existe e sempre existiu, o que faltam são oportunidades. Bastante diversa, a própria comunidade LGBTQIA+ acaba muitas vezes invisibilizando os seus. “Raramente vi uma produtora de conteúdo trans e preta falando na mídia, e poucas vezes acabei me sentindo representada”, diz Giovanna.

Para a historiadora, hoje, a deputada Erica Malunguinho é uma das maiores forças e referências, e será por meio de autoridades como ela que urgentes políticas públicas para transexuais e travestis nascerão. “Sinto que posso virar estatística e a todo momento fico pensando nisso. Políticas públicas vêm de pessoas trans e negras no Estado”, garante Heliodoro. Além de penas mais duras para aqueles que praticam a LGBTQfobia, que é crime, é preciso aprovar políticas para transexuais e travestis no mercado de trabalho, na educação e na saúde. O total de estudantes transexuais em universidades federais do Brasil é de 0,1% e menos de 15 instituições do país têm cotas para alunos trans. O acesso dificultado começa desde cedo e acaba tendo como consequência a exclusão dessas pessoas do mercado de trabalho. Hoje, 90% da população de travestis e transexuais sobrevive da prostituição no país onde o suicídio de pessoas trans é considerado uma epidemia. E por falar em epidemia, sabia que transexuais e travestis pretos são os membros da comunidade LGBTQIA+ que estão mais vulneráveis ao coronavírus? Na hora de procurar o sistema de saúde, o que essas pessoas encontram são médicos que não sabem lidar com seus corpos e funcionários extremamente transfóbicos, que acabam reproduzindo a transfobia institucionalizada pelo Estado. “Precisamos dar início a esse processo de humanizar, naturalizar e respeitar os corpos de pessoas trans. Não existe revolução sem a gente”, afirma Odara Soares, que tem a fala complementada pela da colega Giovanna Heliodoro: “O ódio dessas estatísticas e desses dados tão violentos me motivam. Eu, esse corpo preto, essa travesti, não é só resistência. Ela é vida! Tem sangue correndo aqui. Eu não vou ser mais passiva quando alguém vier me violentar, me chamar de traveco ou perguntar se sou mulher de verdade. Eu vou reagir. Quando você não estiver mais vendo uma luz no fim do túnel, lembre-se de que você tem outros irmãos e outras irmãs trans que estão ali para poder te puxar. Quando uma trans, uma travesti negra, se movimenta, toda a estrutura social se movimenta com ela.

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