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Dia da Visibilidade Trans: É possível narrativas outras para nós?

"Falar sobre visibilidade trans é também lutar por cidadania", diz a escritora transfeminista Sophia Rivera

Por Sophia Rivera Atualizado em 30 jan 2021, 18h32 - Publicado em 29 jan 2021, 17h00

Me chamo Sophia Rivera, tenho 22 anos, atualmente graduanda do 5° período em Serviço Social pela UFPE (Universidade Federal de Pernambuco). Atuo no coletivo Frente Trans PE em Recife, participo do movimento social de travestis e dos processos da assistência social, sou pesquisadora de gênero e defensora dos direitos humanos, sobretudo, do seguimento transvestigênere (junção de identidades trans e travestis).

Escolho esse título, na tentativa de escrever e registrar para além do que já se é falado rotineiramente, pois eu e outras(os/es) semelhantes a mim fomos obrigadas a falar constantemente sobre nossas dores, vulnerabilidades, precariedades, impedimentos e aniquilamentos de nossas histórias e vidas.

A escrita faz parte de minha vida desde antes do meu processo de transição, que eu compreendo como tardia, tendo em vista todos os mecanismos que passei durante a minha trajetória até aqui. Assim como a maioria das pessoas trans, principalmente, as travestis desse Brasil, passei por altos e baixos desde o momento em que me mostrei, botei os pés no chão, transitei e, assim, me fiz engolir, ouvir e dividir espaços com a minha existência. 

Dia da Visibilidade Trans: É possível narrativas outras para nós?
Sophia Rivera @transfeminista/Reprodução

Conheci o que é a fome, a pobreza a ponto de ter medo de no mês seguinte não ter o dinheiro do aluguel e ter que viver em situação de rua, vivendo apenas com uma bolsa estudantil da universidade e, ainda que de forma passageira, perpassei a prostituição quando não sabia mais o que fazer, pois aluguel, alimentação e a manutenção de nossas necessidades pessoais nunca caberia no orçamento de uma bolsa de 300 reais.

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Nesse cenário, iniciei minha terapia hormonal por conta própria, sendo uma escolha pessoal passar por ela, pois a t.h. não é algo obrigatório em nossas vidas. Até porque somos dignas(os/es) independentemente de estarmos ou não dentro das expectativas cisgêneras. O que não foi nada fácil de lidar, tendo em vista que passamos por diversos processos fisiológicos de adaptação, e administrar isso junto com a permanência na universidade e as questões estruturais e subjetivas externas da vida pessoal foi um desafio.

Cheguei a desenvolver muita ansiedade e quase uma depressão, mas sigo viva, e agora fazendo terapia. Para além dessas questões, conheci coisas que atravessam o corpo travesti, a hiperssexualização do meu corpo, a solidão por não ser procurada pelas pessoas e familiares, a sujeição a um lugar abjeto, em que somos vistas como perigosas, na maior parte do tempo, exotificadas, alvo de chacota.

Somos apontadas e criticadas três vezes mais que qualquer outra pessoa, todos os dias precisamos lidar com as ânsias de sair e não saber se voltamos  no final do dia ou no fim da noite, de não ter espaço no mercado de trabalho, de perder o suporte familiar e se ver sozinha, de não ser alvo de afeto. De ter que lidar com o cansaço de se reafirmar enquanto sujeita todos os dias e, consequentemente, também não ter acesso aos direitos básicos como saúde, educação, moradia e alimentação. Sendo assim, o acolhimento feito entre nós me foi compreendido enquanto uma estratégia de sobrevivência e uma maneira de enfrentamento a esse sistema.

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Tempos se passaram, desacreditada de bastante coisa e fortalecida em alguns aspectos, sem querer me aproximei de alguém, que em outro momento jamais imaginaria que poderia acontecer, por acreditar que o afeto não seria mais algo para mim. Muitas águas rolaram, e distante de romantizar processos, hoje me pego saboreando de uma troca monogâmica transcentrada com um homem trans, Charles Oliveira. Passei a escrever sobre meus processos apontando sempre para um outro lugar, supondo, talvez até clamando por outras narrativas diferentes daquelas de dor, sofrimento e dificuldade, questionando, também, assuntos pertinentes para as agências de mulheres trans e travestis.

Dia da Visibilidade Trans: É possível narrativas outras para nós?
Vladimir Vladimirov/Getty Images

Falar da comunidade trans hoje, sobretudo o movimento de travestis engajado pelo nossa pioneira Jovanna Baby, é tratar sobre a urgência de construir cidadania para a nossa comunidade dentro desse modelo de sociedade.

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Esse atual modelo que institucionaliza a transfobia enquanto projeto de sociedade e de mundo como coloca a Maria Clara Araújo, uma realidade cada vez mais difícil de se viver, cafona como diz Érika Hilton, cada vez menos pela seguridade social, dando lugar a uma estrutura cada vez mais penal, munindo uma polícia que não foi feita para nos proteger (como coloca a Ana Flor Fernandes Rodrigues), precarizando cada vez mais a vida das classes subalternas.

Consequentemente, aumentando as expressões de opressão, as violências que, nós travestis somos quem mais sentimos na pele no país que mais mata identidades transfemininas no mundo, majoritariamente, as pretas. Enquanto isso, uma classe dentre seus pequenos grupos, acumulam toda a riqueza desse país. Falta reforma agrária! Falta redistribuição de renda! Falta direitos sociais e políticas públicas garantidas nesse país! Por menos desmontes e mais afrontes para desmantelar esse (cis)tema! Por menos perversidades cisgêneras, como coloca minha amiga Jarda Araújo!

Falar sobre visibilidade trans, para além de um ato político pela subjetividade da identidade de gênero, que é objetiva e material, pois nós existimos e carregamos nossas experiências, é também lutar por cidadania, é desmistificar todas as atrocidades planejadas por esse modelo de sociedade e de mundo que vivemos. Vida para nós mulheres trans, travestis, identidades transfeminines e transmasculines, homens trans e pessoas trans não-binárias, que a nossa visibilidade não seja apenas em janeiro, mas durante todo o ano, que as portas e portais se abram cada vez mais para nós! E, parafraseando Ventura Profana, “Que tremam todos os habitantes da terra, pois o dia da trava e dos corpos transvestigêneres está por vir!”

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