É com mais frequência do que gostaríamos que postamos na CAPRICHO notícias sobre pessoas que foram submetidas a situações humilhantes por desrespeitarem códigos de vestimenta. Muitas dessas situações acabam sendo também preconceituosas e racistas, como no caso de uma empresa de cuidadores de idosos que, em 2019, vetou mulheres gordas e negras de suas vagas.
Recentemente, um colégio da Flórida editou fotos de alunas do anuário escolar para diminuir os decotes de suas roupas. Sem o consentimento delas, as estudantes só ficaram sabendo do ocorrido quando receberam o álbum. A ideia de “photoshopar” as imagens foi do homem responsável pelo tal código de vestimenta da instituição. A foto de nenhum menino foi alterada.
– A ORIGEM DO DRESS CODE
Não se sabe ao certo quando o termo foi criado, mas códigos de vestimenta sempre existiram para diferenciar basicamente as classes sociais das pessoas, assim como seus trabalhos.
Por exemplo, antigamente, as roupas eram responsáveis por distinguir nobres e plebeus. Não apenas moldes e tecidos eram levados em conta: as cores também eram indicativos de sua posição social. A cor púrpura era uma exclusividade da realeza, usado por reis e rainhas, imperadores e pelo alto clero. Em 1952, quando a Rainha Elizabeth II foi coroada, ela usava um manto e uma coroa feitos de veludo roxo.
Ao longo da história, outros códigos do tipo foram criados, ainda com o intuito de estabelecer uma hierarquia visual entre classes. “A historia da vestimenta ilustra a utilização do dress code como expressão do valor controle nas organizações. O uso da gravata, por exemplo, emergiu nos EUA como acessório para os white-collar workers para diferenciá-los dos blue-collar workers (cujo trabalho requeria emprego de força física)”, explicam Ma. Alessandra dos Santos Libretti, Dra. Maria Cristina Amorim e Rosana Moreira no artigo Dress Code: Das Considerações Teóricas às Práticas nas Organizações, publicado na revista Pensamento & Realidade, em 2018.
– AS VESTIMENTAS DOS ESCRAVIZADOS
O jornalista e historiador Luís André do Prado descobriu que as roupas produzidas para os escravos iniciaram a produção de vestuário em série no Brasil. Se no século 19, as mulheres da alta sociedade usavam vestidos bufantes com muitas camadas de tecido, inspirados em modelagens francesas, e os homens longos paletós com camisas de golas e babados, geralmente feitos por modistas, os escravos vestiam roupas simples de algodão, geralmente produzidas com tecidos reutilizados, que anteriormente serviram para ensacar café. “Pude comprovar, por meio de anúncios em jornais da década de 1820, a existência de manufaturas de roupas feitas em série para eles”, contou o historiador em entrevista ao TAB.
Hoje, a produção em massa é algo que marca a indústria da moda, que produz roupas de diversos estilos e preços, de marcas ou falsificadas, passando por uniformes de trabalho, que não deixam de assinalar uma escravidão moderna – que afeta muitas pessoas que estão nas linhas de produção de empresas mais ou menos conhecidas.
Desde 2010, mais de 35 marcas estiveram envolvidas em processos para denunciar trabalho escravo no Brasil e mais de 400 costureiros foram encontrados em condições análogas à escravidão no país, de acordo com dados do aplicativo Moda Livre, desenvolvido pela ONG Repórter Brasil.
– O MACHISMO POR TRÁS DOS CÓDIGOS DE VESTIMENTA
A máxima dos séculos 18 e 19 era: quanto mais camadas, melhor! Isso, claro, valia mais para as mulheres, que eram refém do espartilho, uma peça que apertava a cintura, para deixá-la mais fina e marcada, e era considerada íntima. Ou seja, tão indispensável quanto a calcinha. “O regime patriarcal e a sociedade machista da época imprimiam todas as suas vontades e desejos na imagem feminina, através dos bons modos ensaiados e ensinados pelos pais e pela igreja(…) As roupas femininas transmitiam a pureza, mas também o erótico do imaginário masculino(…) O vestuário feminino sempre esteve ligado aos interesses masculinos, do que aos seus interesses de satisfação pessoal. A mulher se vestia para eles somente, seguindo padrões estabelecidos. Como era a “vitrina” de seu marido, se esforçava e mantinha o status necessário para a ascensão social de tal”, explica Camila Aruda, formada em Design de Moda pela UNISAL, no blog Trapezia.
A especialista ainda lembra que muitos desses “incrementos estéticos” prejudicavam a saúde da mulher, mas eram usados por status. É sabido que, antigamente, as mulheres desmaiavam mais ao sofrerem fortes emoções, justamente por causa da compressão do espartilho. Camila também pontua outra questão ligada ao machismo envolvendo os códigos de vestimenta, que geram frutos (podres) até hoje: “Um vestido com uma crinolina exagerada, por exemplo, serviria de escudo contra possíveis investidas e contatos galanteadores que não fosse de seu marido, e no caso de uma moça da família solteira, de ninguém. Recato total. Até porque não possuíam o direito de se defender. Se algo ocorresse, a culpa seria da mulher“.
Em 1909, o designer Paul Poiret criou o primeiro modelo de calça comprida feminina, decretando o fim dos espartilhos, mas apenas para aquelas mais corajosas e de famílias menos conservadoras, já que o uso da peça de roupa estava associado a comentários maldosos e misóginos. Nos anos 60, as minissaias se popularizaram com a estilista Mary Quant e também foram marcadas pelo machismo. O mesmo aconteceu com peças de banho. No decorrer da história, teve até mulher sendo presa por usar na praia um modelito mais justo, mesmo que ele cobrisse seu corpo do pescoço aos pé. Foi o caso da nadadora australiana Annette Kellerman, detida em Boston, nos EUA, em 1907. Em 1934, foi criado inclusive um tal de Código Hays para fiscalizar as roupas de banho de duas peças. Uma das regras dessa série destinada ao comportamento das mulheres de Hollywood era não poder mostrar o umbigo em filmes. Eis a popularização das hot pants!
Ainda hoje, mulheres são julgadas pelas roupas que usam: ou estão expondo de mais ou de menos, ou não estão seguindo as tendências da época, ou estão usando roupas consideradas masculinas, ou estão usando vestimentas que vão contra os “padrões” da empresa, ou precisam se enquadrar nesse “controle de qualidade” e mudar seu cabelo, seu peso e até seu tom de pele. O problema está sempre na mulher ou no fato de ela estar se vestindo ou se comportando de uma maneira “ofensiva” ou “inapropriada”. Nunca a culpa é da sociedade ou daqueles que ainda ditam regras ultrapassadas, preconceituosas e racistas. “A palavra chave para interpretar a simbologia do dress code é adequação. Como os valores associados aos símbolos podem ser interpretados de diferentes maneiras, entender a cultura organizacional e suas dimensões é fundamental para entender o que cada símbolo quer dizer em determinada organização. Em síntese, o dress code é um artefato da cultura associado aos valores, crenças e sentimentos organizacionais de valor simbólico, indicador do modo pelo qual a hierarquia é tratada, comprometido com as fantasias das lideranças quanto as suas próprias interpretações de imagem adequada (o que pode se dar independentemente do contexto e da dificuldade de interpretação da relação entre valores – da base da cultura – e artefatos)”, ressaltam Alessandra, Maria Cristina e Rosana no artigo Dress Code: Das Considerações Teóricas às Práticas nas Organizações.
– DRESS CODE É SEMPRE IMPOSIÇÃO?
Não existe uma lei que fale sobre códigos de vestimenta, que são uma questão contratual. E os contratos fazem leis entre as partes. Recorrer à Justiça para denunciar cláusulas abusivas referentes ao Dress Code, quando ele está ligado a alguma instituição, é possível, mas talvez não seja a solução mais efetiva olhando a questão como um todo. É estrutural e tem herança em todas essas problemáticas sistêmicas envolvendo hierarquia de classes, machismo e racismo. Até os menos problemáticos dos códigos, como aqueles que ditam como devemos ir ou não vestidos a determinado evento, têm essas raízes.
Individualmente, é muito importante que cada um de nós faça sua parte quando se deparar com alguma imposição ligada à aparência, relatando o problema para os superiores, expondo o caso usando as redes sociais e, dependendo do episódio, fazendo, sim, uma denúncia formal, já que, em algumas casos, os códigos de vestimenta são pautados em crimes previstos em lei, como racismo, homofobia e violências contra a mulher.
“A empresa resolve fazer um manual de dress code, engessa todos os colaboradores em um padrão de qualidade e não vê como a mulher é prejudicada, como sua rotina se torna exaustiva e quanto do seu salário é separado para se adequar a essas normas. A grande tendência é maleabilizar esse manual, mas ainda assim, existe uma cultura patriarcal que precisa ser mudada. Sabe o que nós mulheres precisamos? Liberdade de escolha! A mulher precisa ter o direito de escolher entre trabalhar de salto e maquiada ou, de calça jeans e camiseta despojada”, pontua Aline Novaes Gomes Tescaro, palestrante e CEO na Stardust Agência.