Em junho deste ano, líderes de religiões de matriz africana acusaram a polícia de racismo e violência religiosa no caso Lázaro Barbosa. Espaços sagrados foram invadidos e fotos desses locais foram divulgadas pelas autoridades como se fossem da casa de familiares do assassino. Nenhum desses líderes conhecia Lázaro. “Fizeram uma inquisição religiosa”, afirmou Tatá Ngunzetala, líder afro tradicional do Candomblé Angola-Congo e Umbanda, em vídeo. No ano passado, Kate Belintani perdeu a guarda da filha de 12 anos após ritual de Candomblé. Uma denúncia anônima foi feita alegando supostos casos de abuso no terreiro. A menina foi ouvida pela polícia e garantiu que estava no local por vontade própria, fazendo um tratamento espiritual. Mais tarde, a denúncia se confirmou falsa e a mãe recuperou a guarda da menor, não sem antes também sofrer com a inquisição religiosa. Em 2011, apedrejaram uma garota de 11 anos no Rio de Janeiro, enquanto ela saía de um culto de Candomblé. A vítima foi atacada por evangélicos, que responderam por intolerância religiosa. Mais uma vez, a inquisição se fez presente no Brasil.
Para entender o conceito de inquisição, é preciso estudar a história da religião no país. No século XIII, um tribunal eclesiástico foi instituído pela Igreja Católica (chamado de Inquisição ou Santo Ofício) a fim de investigar e julgar hereges e feiticeiros. Ou seja, todos que cometessem o “crime” de não seguir a fé católica e fossem acusados por isso. Afinal, eram vistos como ameaças em potencial à doutrina. Para Júlia Dias, de 15 anos, estudante e umbandista, a intolerância que vemos contra religiões de matriz africana tem suas raízes na Idade Média e moldou todo um comportamento social pautado em cima de preconceitos e fake news. “É estrutural da supremacia branca e do Cristianismo, e é intensificada por líderes religiosos que têm voz e poder psicológico sobre seus fiéis, menosprezando com intolerância religiosa, inclusive uma bem agressiva, em que muitas vezes não nos deixa exercer nossa fé”, disse em entrevista para a CAPRICHO.
Júlia gosta de dizer que segue a Umbanda desde que estava na barriga da mãe, que também é adepta da religião. “No final dos anos 70, surgiu a Igreja Universal do Reino de Deus, dirigida por um ex-pai de santo (sacerdote de Umbanda), o Edir Macedo. Ele, para ganhar popularidade e fiéis, começou a difamar a Umbanda, o Candomblé e outras crenças de matriz africana”, alega. O cenário ficou ainda pior durante os anos de chumbo da Ditadura Militar. “Os líderes políticos colocavam o nome de Deus como forma de poder, e começaram a dar ordens de quebrar/fechar terreiros e prender sacerdotes dessas religiões. Sendo assim, por todo esse histórico, os guias e orixás começaram a ser vistos como demônios”, explica. O escritor umbandista Andrew Oliveira, de 27 anos, revela que a própria formação da Umbanda veio de um ataque racista, quando Zélio de Moraes incorporou um caboclo em uma mesa espírita e foi segregado por isso. Para os que estavam no local, os espíritos de pessoas negras e indígenas eram inferiores àqueles com os quais eles trabalhavam no centro, que eram espíritos de pessoas brancas. “Não é de hoje que os intolerantes depredam terreiros, porque isso é uma reinteração do que as religiões ‘brancas’ fizeram ao longo da história, numa tentativa de reafirmar sua superioridade. Esses ataques são típicos de um sistema racista”, garante o autor.
UMBANDA E CANDOMBLÉ SÃO A MESMA COISA?
Apesar da confusão, Umbanda e Candomblé são religiões distintas. “A Umbanda é uma religião brasileira de matriz africana, que sofreu influências do Espiritismo e da Igreja Católica no seu sistema religioso. Já o Candomblé é ligado diretamente aos negros escravizados que vieram da África para o Brasil”, esclarece a pedagoga e afroempreendedora Jamile Kyanda Barboza, de 33 anos, iniciada há quatro anos no Candomblé. Andrew Oliveira ainda explica que, dentro da Umbanda, há várias vertentes, como a dele, que é a Umbanda Traçada: “Cada casa trabalha de um jeito específico. A minha tem influências do Yorubá com a bruxaria do conhecimento popular. Tem Umbanda que vai ter mais a pegada do Espiritismo, tem Umbanda Esotérica, que vai mexer com cabalas e mandalas (a chamada ‘Umbanda Sagrada’, uma vertente mais nova e mais pop, por assim dizer). Enfim, isso acontece porque a Umbanda é uma religião muito adaptável, ela se molda conforme a espiritualidade de cada médium, e das heranças espirituais ele vai trazer“.
A palavra “Umbanda” vem do vocabulário quimbundo da Angola e significa “a arte de curar”. Essa cura acontece nos terreiros através das giras (sessões de culto). Nelas, os médiuns incorporam os guias e orixás, e são dados passes (benzer) ou atendimentos (quando você conta sobre algum problema e o guia se dispõe a ajudar). No Candomblé, os cultos também acontecem em terreiros, mas são baseados na busca da conexão ancestral através dos orixás e de outras entidades, como caboclos, exus e pombagiras, como conta Jamile. “As pessoas têm o hábito de querer ficar comparando as religiões, e isso não pode acontecer. Apesar de também trabalharmos com os orixás na Umbanda, cada religião trabalha de um jeito”, assegura Andrew.
Outra diferença é em relação às “macumbas”, tão carregadas de estereótipos negativos em nossa sociedade. A umbandista Júlia já se cansou de escutar comentários preconceituosos sobre sua religião na escola. “Chuta que é macumba”, “Culto de preto sem vergonha” e “Credo, prefiro ter tal pessoa sentada ao meu lado do que esse exú” foram os mais repetidos até hoje. “Existem, sim, trabalhos de magia negativa realizados por médiuns que estão caídos espiritualmente. Mas essa magia não faz parte de terreiros sérios e de médiuns evoluídos. As tais ‘macumbas’ são muitas vezes confundidas com as entregas que fazemos em pontos de força, como em encruzilhadas urbanas. Essas entregas de alimento não são porque os orixás precisam comer ou beber, mas porque precisamos da energia desses itens para nos conectarmos com eles “, explica a estudante. “Esses guias são espíritos evoluidíssimos, que já viveram vidas humanas aqui na Terra, que já passaram pelos sofrimentos que todo mundo já passou. E esses espíritos são encantados no Mundo Astral pelos orixás e recebem permissões para descer na Terra e ajudar no trabalho de caridade”, completa Andrew.
Jamile revela que, no Candomblé, macumba é um instrumento musical de percussão. Já as entregas são chamadas de oferendas, e são feitas para diversos fins: fortalecimento, agradecimento, conexão com as entidades… Assim como toda religião, o intuito é dar conforto. Como na Umbanda, passes também são aplicados no Candomblé pelos caboclos, que também fazem rezas com charuto, com folhas, etc. É possível dizer que a base das duas religiões é a mesma, mas a forma de cultuar as entidades são diferentes. “95% dos terreiros de Umbanda não fazem sacrifício animal, mas 80% usam as vísceras e a própria carne do animal [já comprado morto] para fazer os rituais. O médium usa da energia do animal para oferecer para algum guia ou orixá para obter algo”, pontua Tatiana Dias, mãe da Júlia. Jamile explica que no Candomblé é, sim, feito o sacrifício de animais, que eles chamam de sacralização, ou seja, tornar aquele processo sagrado. “A prática da sacralização está também na Bíblia, livro sagrado das religiões cristãs”, sinaliza. Depois de mortos, os animais são utilizados na alimentação dos membros da casa. Os mais comuns são frango, boi e bode [que são abatidos de maneiras bastante cruéis pela indústria da carne]. Jamais são usados animais domésticos nos ritos, como cachorros ou gatos. O abate é feito com o mínimo de sofrimento possível e é garantido por lei pela Secretaria de Defesa Agropecuária, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, como consta no item 11.3 do Regulamento Técnico de Métodos de Insensibilização para Abate Humanitário de Animais de Açougue: “É facultado o sacrifício de animais de acordo com preceitos religiosos”. “Observa-se, no Direito uma opinião majoritária na literatura que tende a aceitar a sacralização de animais nas religiões de matriz africana, com argumentos históricos, culturais e antropológicos apresentados que refutam aqueles que apresentam posição divergente. O dever da Ciência do Direito neste caso é de promoção da igualdade, reparando as garantias que historicamente foram tiradas, e promovendo a plena igualdade racial, cultural e de religião“, explicam os advogados Matheus Queiroz Maciel e Euripedes Brito Cunha Junior no artigo Direito fundamental à sacralização de animais no candomblé à luz do direito brasileiro.
UM ESTADO LAICO, MAS APENAS NA TEORIA
Jamile Barboza conta que onde mais sente o preconceito é no transporte público. Pessoas já chegaram a repreendê-la por sua religião e até a trocar de lugar, quando reparam que ela está vestida de branco e com elementos que fazem parte da religião, como contas e turbantes. “O sistema religioso de matriz africana é composto por muitos elementos, cada fase na trajetória religiosa é marcada por símbolos com cores e características únicas. Por exemplo, o primeiro ano pós-iniciação, o iniciante, que chamamos de Yaô, veste apenas roupas brancas, contra egum, para proteção espiritual”, explica a pedagoga, cujo nome de iniciada é Yao Dofona dé Sàngó do Ilé Àṣẹ Àlá Obatalandê. Para ela, a intolerância religiosa está ligada ao racismo presente na construção histórica, social e econômica do Brasil, que é uma história com forte presença ideológica cristã e embranquecida. “Quando houver o conhecimento sobre as outras religiões, sem preconceitos e estereótipos, teremos mais respeito e uma melhor convivência. Em segundo lugar, as instituições devem defender a liberdade de crença e de expressão, para que todos nós possamos dialogar abertamente e pacificamente sobre preferências religiosas”, afirma a afroempreendedora, que encontrou no Candomblé uma forma de resistência e de se sentir mais conectada às suas origens: “O que me encanta na religião é a forma como ela preserva a cultura e os valores africanos, e isso fortalece a nossa identidade em um país onde o racismo não reconhece o negro como detentor de uma história positiva. Além disso, essa religião é muito acolhedora, a filosofia africana presente nela não exclui nem promove separações”.
Os negros no Brasil que seguem religiões de matriz africana sofrem violências combinadas: o racismo somado à intolerância religiosa. Apesar de Júlia Dias não sofrer com o racismo, nem nunca saber na pele como é ser vítima dele, ela critica a formação da história da religião no Brasil, em cima da catequização de povos indígenas, os primeiros a serem proibidos de exercer suas crenças. Depois, a história se repetiu durante o período da escravidão. “Quando os africanos foram trazidos à força para cá, foram obrigados a seguir o Catolicismo porque os colonizadores achavam que o culto deles era coisa de demônio. Então, os escravos passaram a colocar dentro de imagens de barro de santos católicos elementos que representavam os orixás. Isso deu origem à expressão ‘santo do pau oco’, por exemplo”, conta a curiosidade, uma metáfora perfeita para o Brasil, que se diz um Estado laico, cuja maioria da população é negra, tem indígenas como povos originários, foi o último país do continente americano a abolir a escravidão, tem uma jornada baseada na segregação racial e em suas consequências, mas segue se escondendo numa imagem de “bom moço”.