Não participar do boicote a Hogwarts Legacy te faz uma pessoa transfóbica?

Não tem passe de mágica! Conversamos com criadores de conteúdo sobre Harry Potter e streamers LGBTQIA+ para tentar chegar a uma resposta (ou a várias)

Por Isabella Otto Atualizado em 29 out 2024, 18h56 - Publicado em 25 fev 2023, 10h01

Em duas semanas, Hogwarts Legacy vendeu mais de 12 milhões de cópias no mundo todo, alcançando um faturamento de US$ 850 milhões em 14 dias. O game também bateu recorde de tempo de jogo: 280 milhões de horas somente nesses primeiros dias de lançamento. Tudo isso em meio a um cenário de boicote – ou uma tentativa dele -, para ir contra as muitas falas transfóbicas já ditas por JK Rowling.

Nas redes sociais, o debate segue a todo vapor. Enquanto algumas pessoas acreditam que boicotar o game não é a melhor maneira de combater a transfobia da autora de Harry Potter – uma vez que ela não estaria na lista dos maiores prejudicados -, outros defendem que é muito fácil ser traído por uma “saga conforto da infância” e se posicionar contra a movimentação – especialmente no caso de pessoas cisgênero.

O que pensam os criadores de conteúdo?

A CAPRICHO entrou em contato com gamers, streamers e influenciadores que criam conteúdo sobre Harry Potter. Alguns não se sentiram confortáveis para falar sobre o assunto, justamente por já terem recebido ameaças por estarem consumindo Hogwarts Legacy.

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Não foi o caso de Andreza Delgado, Diretora Criativa da PerifaCon, apresentadora e podcaster no Lança a Braba. “Eu acho que essas pessoas que escolhem não se posicionar, elas estão claramente tomando um lado, e é o lado que não se importa com vidas trans. Quando você escolhe não falar abertamente do quão abominável é o comportamento da JK Rowling, temos um problema“, opina a criadora.

Ela, contudo, reforça que não é sobre jogar ou não o game, mas sobre não ignorar todas as questões envolvendo JK Rowling: “Sinto que boa parte dos criadores de conteúdo sobre Harry Potter simplesmente fingem que a autora não é uma pessoa problemática, e voltamos para aquela premissa de que não se posicionar já é um posicionamento”.

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Thiego Novais, do canal Observatório Potter, é um dos criadores de conteúdo sobre Harry Potter mais relevantes do Brasil e foi um dos primeiros a testar o game. O jornalista fala sobre a saga na internet desde os 14 anos de idade e não acha que aqueles que não participam do boicote se tornam automaticamente pessoas transfóbicas, “mas é importante reconhecer as preocupações legítimas da comunidade trans nesse momento. Como criador e trabalhando com a saga, é importante que eu tenha responsabilidade e faça o meu melhor para não machucar ninguém com minha voz e meu alcance”.

Para a streamer Wanessa Wolf, não se posicionar não é uma opção. Assim como repudiar toda a transfobia vinda da autora, manifestar-se sobre é uma necessidade. “Principalmente porque eu joguei e sou pertencente a comunidade trans, não teria como consumir qualquer produto referente a franquia e ficar sem fazer nada, eu não me sentiria bem sabendo que estou ajudando de certa forma financiar a transfobia”, garante.

Duas jovens interagem com seus livros de Harry Potter. Uma abraça ele e outra o lê sentada, vestida de bruxa
“Já conheci inúmeras histórias de como a série mudou e moldou a vida de muitas pessoas, incluindo a minha”, diz o PotterTube Thiego Novais Diane Bondareff/Bloomberg e Lisa Maree Williams/Getty Images

Ressignificando a magia

As grandes empresas, como Warner e Wizarding World, não vão boicotar um título que faz tanto sucesso e gera tanto lucro. Há, inclusive, rumores de que a HBO esteja trabalhando em uma série derivada do jogo. “O posicionamento tem que ser pessoal, tem que vir do público, seja como boicote ou como crítica. Se as pessoas não estiverem consumindo, não existe mais motivos para explorar o produto e ele deixa de existir”, garante Delgado.

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Mas vamos ser sinceros?! Harry Potter nunca vai deixar existir ou se tornar um título pouco lucrativo. A saída, pelo menos para Wolf, é buscar alternativas reparadoras de danos. A streamer, por exemplo, arrecadou dinheiro com as suas gameplays e reverteu para instituições de apoio à população trans e travesti do Brasil. “Essa foi a melhor alternativa que eu encontrei para que eu pudesse jogar tranquilamente sabendo que estou usando da visibilidade do jogo e a minha para a causa trans. Acredito que essa seja uma das melhores alternativas para quem é ou se importa com pessoas trans mas também é fã da franquia e gostaria de consumir o produto”, analisa a criadora de conteúdo, que garante que essas ações valem para todos: “Quem consome os produtos da franquia sem buscar outra alternativa para reparar os danos que a autora provoca na comunidade trans, pode não estar sendo transfóbico necessariamente, mas está compactuando com a transfobia ou não se importa com as atitudes transfóbicas da autora e até mesmo da sociedade”.

Dois pesos, duas medidas?

Durante a entrevista, Andreza Delgado fez uma reflexão importante: e se Harry Potter tivesse sido escrito por um homem cis abertamente homofóbico? “Talvez as pessoas entenderiam a dimensão do problema que é alguém investindo dinheiro em políticas que agridem diretamente a existência de outras pessoas e o quanto isso é sério. É preocupante o quanto isso revela o limite moral das pessoas e eu acho que elas deveriam se perguntar se engajariam um conteúdo homofóbico ou racista sabendo que o autor investe dinheiro em políticas anti-gays ou anti-negros. E deveriam se perguntar se uma obra ficcional é mais importante do que a vida de pessoas trans”, alerta.

Essa régua moral também incentiva outra discussão, envolvendo pinkwashing [quando marcas se apropriam do movimento LGBTQIA+ para mascarar problemas ou se dizer inclusivas]. Há uma personagem trans em Hogwarts Legacy, mas Chris Gonzatti, do Diversidade Nerd, acredita que isso não é representatividade, apenas “a indústria cultural usando diversidade para mascarar problemas de diversidade”.

Wanessa Wlf concorda: “Isso, sem dúvida, é uma forma de mascarar as problemáticas da autora. Uma solução melhor que eu vejo seria contratar desenvolvedores de jogos trans, destinar parte dos lucros do jogo para instituições de amparo a pessoas trans e assim gerar menos precarização para comunidade trans“.

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Uma coisa é certa: abafar o problema está longe de ser uma solução. E talvez o boicote não tenha mesmo dado tão certo – pelo menos, no quesito números -, mas fez barulho; e isso já é alguma coisa.

JK Rowling segurando um livro de Harry Potter. Ela é uma mulher branca, loira e alta
JK Rowling no lançamento de “Harry Potter e As Relíquias da Morte”, em Londres, em 2007 Michael Crabtree/Bloomberg/Getty Images

É possível separar o autor da obra?

Tá aí a pergunta de um milhão de dólares! Wolf acredita que não. “Principalmente, quando este autor ainda está vivo e perpetuando atitudes que não condizem com meus ideais e que desrespeitam a minha identidade. Por exemplo: quem se importa com a comunidade trans tem que, no mínimo, procurar alternativas para minimizar os danos causados pela autora, se for consumir algum produto da mesma”, alerta.

Andreza Delgado, que é uma mulher negra, já vê uma linha tênue nessa questão: “Eu sempre dou o exemplo de como você pode subverter a obra de um autor problemático, como H.P. Lovecraft, que tinha várias opiniões racistas. Pegaram Lovecraft County e conseguiram subverter isso e traçar discussões raciais”. Para a apresentadora, esta também é uma alternativa.

Existe então uma saída para os fãs de Harry Potter? “Seria perfeito se as pessoas que gostam de escrever fanfics subvertessem a obra de Rowling! E é muito importante a gente ter consciência do que está consumindo. Não estamos 100% protegidos de consumir conteúdos feitos por pessoas problemáticas, mas temos que sempre fazer esse exercício“, conclui.

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