O legado de Dona Valda, a mulher mais feminista que não sabia de feminismo

Neste texto, dedicado à avó, Gabie Fernandes fala sobre a herança de Dona Valda e sua história de libertação: "Só mulheres podem curar mulheres"

Por Gabie Fernandes 20 mar 2021, 10h08
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CAPRICHO/Sestini/Reprodução

Algumas coisas não aparentam a idade que têm. O feminismo não é tão antigo quanto deveria ser. Muitas mulheres geniais passaram por este mundo antes mesmo do termo existir. Ainda assim, tenho a impressão de que nenhuma mulher conhece a luta feminista na teoria antes de conhecer na prática. Digo isso porque a mulher mais feminista que eu* conheço não sabia quem era Marie Curie, nunca leu um livro feminista (aliás, nem sabia ler) e não tinha ideia do que era ser sufragista. Minha avó era feminista antes mesmo de saber o que era isso, e a história da Dona Valda é o meu berço de estudo e inspiração.

Vovó era uma estrela de nascença. Cantava feito pássaro e se pintava de rouge para ir ali e voltar. Vovó era um acontecimento, desses que param a rua! Mulher livre que era, tinha o sonho de conhecer o mundo sendo artista. Foi chamada para cantar nas rádios do Rio de Janeiro, conhecer grandes nomes. Ia cantar com uma tal de Dalva, famosa que só na época! Estava feliz feito criança! Mas durou pouco… A mãe dela, lógico, não deixou e calhou de arrumar um casamento pra muito logo sossegar a filha em casa.

O legado de Dona Valda, a mulher mais feminista que não sabia de feminismo

Valda se casou. Teve filhos. Ficou viúva. Tudo tão repentino! A vida da mulher tem dessas nuances, tudo ocorre rápido e de repente. Mas vovó se casou de novo, desta vez com o meu avô. Foi agredida. Vovó o expulsou de casa e sempre que me contava essa história dizia uma frase genial: “Rosto que minha mãe beijou nenhum homem põe a mão”. Achei forte. Dona Valda era cheia de si.

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Vovó desde então ficou falada na rua, desde meretriz até bruxa, tudo diziam dela! Sete filhos pra criar, trabalhava até tarde, tinha uns namoricos, mexia com ervas e fazia benzedura: um prato cheio para a vizinhança fofoqueira. Não via ela ligar. Vovó era só dela e pronto. O que o outro pensava pouco importava.

Criou os filhos sozinha. Vieram os netos. Eu sou a mais nova das netas e também a mais parecida com vovó. Resolvi virar artista e ganhar o mundo como ela quis fazer uma vez e não pôde. Lembro que, quando abandonei a faculdade de engenharia pra fazer teatro, eu estava morrendo de medo de contar pra minha avó. Eu era a primeira neta a entrar numa faculdade federal e carregava em mim um temor gigantesco de decepcionar a Dona Valda. Quando desabafei sobre ser atriz, vovó começou a chorar, me abraçou e disse a maior benção que eu já ouvi: “Eu sempre quis ter uma neta artista!”. Meu coração apaziguou de uma maneira… E eu entendi que só mulheres podem curar mulheres. Eu libertei minha avó e ela, ali, também me libertou.

O legado de Dona Valda, a mulher mais feminista que não sabia de feminismo
Juliana Dias/CAPRICHO
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Já perto da minha passarinha Valda me deixar, eu passei uma tarde gostosa com ela comendo docinho e falando da vida. Numa das tantas horas de conversa, ela soltou uma frase carinhosa sobre meu irmão mais velho: “Seu irmão nasceu pra cuidar, ele vai ser um lindo pai! Nasceu pra isso!”. Eu, que sempre fui completamente sem jeito com criança, ri e fiz questão de perguntar: “E eu vó!? Nasci pra quê!?”. Ela me olhou com seus olhos verdes fundos, como se pudesse ver através de mim, e disse: “Você nasceu pra voar”.

Aquele dia eu entendi meu papel no mundo. Minha avó era a mulher mais linda que eu conheci, mais livre e mais cheia de amor próprio. Minha avó é histórica, minha avó é arte e eu tenho o maior orgulho do mundo de alguma maneira ter herdado dela os olhos, o sorriso e também a vontade de ser eu e só.

Minha avó não sabia nada sobre feminismo. Queria ter conversado mais com ela sobre. Ter falado sobre Frida Kahlo, sobre os termos que aprendi, os livros que li… Queria ter dito pra vovó que existiam mais mil mulheres fortes e maravilhosas, e que ela era uma delas! Queria ter dito tanta coisa… Mas parte de mim acredita que, no fundo, ela já sabia. Dona Valda sempre quis fazer história, mal sabe ela que conseguiu. E mais uma vez me sinto curada e me sinto curando.

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*Gabie Fernandes é atriz e escritora, e lançou seu primeiro livro “23 Motivos Para Não Se Apaixonar” pela Planeta de Livros Brasil (clique aqui para comprar). 

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