O que fazer quando o autor que você admira se revela uma pessoa ruim?
As denúncias de abuso sexual contra o escritor Neil Gaiman levaram diversos leitores a se revoltarem com as obras dele

o universo da literatura, os autores são a mente brilhante e criativa por trás da criação de um novo mundo, nos permitindo viver aventuras que se conectam profundamente com quem somos. A possibilidade da transformação pessoal é tão grande que não é difícil se apaixonar pela obra e pelo escritor, que se torna uma das pessoas mais admiradas e importantes da sua vida. Mas, e quando esse autor quebra o vidro da admiração e sai do pedestal ao se mostrar uma pessoa ruim, sem escrúpulos e que, na verdade, vai contra todos os seus princípios?
Esse tipo de choque não é um fenômeno novo. Há algumas semanas, uma reportagem extensa e muito apurada da New York Magazine denunciou diversos casos cruéis e grotescos de abuso sexual cometidos por Neil Gaiman, um dos maiores nomes da literatura ficcional, autor de obras como Coraline (2002), Good Omens (1990), adaptado em série pelo Prime Video em 2019 e Sandman (1989), adaptado em série pela Netflix em 2022.
Ainda em 2024, o podcast Master: The Allegations Against Neil Gaiman já havia reunido duas denúncias também de abuso sexual contra Gaiman, o que fez, inclusive, a Disney interromper a adaptação cinematográfica de O Livro do Cemitério, também do autor. Na época, os relatos divulgados não tiveram tanta repercussão quanto a reportagem da New York teve, ao ponto de que, horas após a publicação da matéria, fãs de Gaiman lotaram o X (ex-Twitter) com comentários revoltosos e incrédulos contra o escritor.
Entre os comentários no X, um dos fatores que mais impulsionou o ódio e a descrença, além das denúncias detalhadas, foi a percepção de que Neil Gaiman não é a pessoa que ele se vendeu ao longo dos anos. Em entrevistas, anúncios e falas, o escritor sempre trouxe à tona falas feministas e ele próprio se declarava um ‘homem feminista’. Por meio das denúncias, o público pôde ver que, por trás da imagem do ‘bom moço feminista’ se escondia um predador sexual que buscava mulheres vulneráveis para abusar.
não tem “separar autor da obra” no caso de neil gaiman, ele est*pr*u mulheres na frente do próprio filho!! usou a causa feminista e lgbtqia+ pra crescer carreira enquando abusava de mulheres no off. quero que todos os livros dele vao pro caralho
pic.twitter.com/3WWQnJCFvG— ִֶָ (@theguiltylakes) January 14, 2025
Neil Gaiman is such a profound disappointment. He spent his life creating beautiful work for people who needed an escape all while secretly being exactly the monster so many of us needed the escape from. To me, that feels like a very specific, very sinister kind of betrayal.
— The Sassiest Semite (@LittleMissLizz) January 13, 2025
O choque de realidade ao perceber que o ídolo, na verdade, não era salvo de erros e imperfeito é, para o criador de conteúdo Thiago Guimarães, explicado pela atual forma de enxergar a arte e seus criadores. “A gente coloca todo valor de uma obra na mão de uma única pessoa, que é esse grande gênio e deixa de olhar pro fazer coletivo da arte”, afirma. Thiago, conhecido nas redes pelo seu conteúdo sobre cinema, cultura pop e comportamento, explica que a arte é feita a partir de referências e, por isso, abrange diversas pessoas, e não só o seu criador.
“Neil Gaiman fez uma carreira literária basicamente remixando referências. Não falo isso para descredibilizar o trabalho dele, mas é inegável que é um trabalho pop que trabalha com remix de referências da mitologia grega e de mitos populares”. O grande problema neste tipo de sistema é que, quando somente uma pessoa é reconhecida pelo trabalho, ela conquista prestígio e poder.
tudo no caso do neil gaiman é NOJENTO. é uma imensidão de atrocidades que ele trata como bdsm. a esposa era conivente. ele fazia perto dos filhos. pior é que tem gente preocupada com a RENOVAÇÃO DAS SÉRIES de “representatividade” quando uma das vítimas é uma mulher lgbt.
— cristal ४ (@darklaufey) January 13, 2025
espero que não tratem o neil gaiman da mesma forma que a jk, não faz nenhum sentido você consumir algo de um abusador com a desculpa de separar arte do autor.
suas obras não significam mais NADA e ele merece o esquecimento
— claranás (@ladylesbianism) January 13, 2025
sobre caso do Neil Gaiman
tão triste ver um cara que faz textos defendendo muitos direitos humanos e aliados a causa LGBT possa ter cometido tantos atos hediondos
por isso odeio saber sobre artistas em geral, uma enormidade deles não são pessoas legais 🥺 pic.twitter.com/zfJcO747Ls
— thi (@thiagochareti) January 14, 2025
No caso de Gaiman, seu poder era sua posição e reconhecimento social, usados a seu favor para que ele atraísse mulheres em posição de vulnerabilidade, artistas que queriam reconhecimento, que queriam uma porta de entrada nesse mundo da literatura, que precisavam de dinheiro, e abusasse delas – “esse é o mecanismo que fez ele manter as vítimas caladas por tanto tempo”.
Deixar de lado a ideia do “gênio em um pedestal” que criou a arte e que é uma “instituição isolada do resto do mundo” e enxergá-la como “parte do mundo e por isso carregando em si em vários problemas do mundo” é o começo para encarar a arte com perspectiva crítica, algo incentivado por Thiago.
A arte não é imaculada
Com a divulgação das denúncias contra o autor, as redes sociais foram tomadas também por fãs e leitores no geral que afirmaram nunca mais lerem nenhum livro de Gaiman e até anunciarem doação das obras do autor. Entre especialmente usuárias femininas, o desprezo pareceu ser mais acentuado e não é difícil encontrar postagens no X em que elas passam abominar os livros e as séries dele.
A ação não é questionável – cada pessoa encontra a melhor forma de lidar com o luto de ter perdido uma pessoa que admirava por descobrir que ela não era exatamente assim. Em entrevista à CAPRICHO, Thiago Guimarães revelou não acreditar existir uma resposta certa para o que fazer com as obras da pessoa que você admirava, mas ele acredita que cada caso é único.
Com as obras de Gaiman, por exemplo, sua posição é mais direta porque “muda a minha relação com a obra”: “Se por acaso anunciarem uma segunda temporada de Sandman, eu não vou assistir, não tenho interesse”. Quanto aos livros, também pretende se manter afastado, não comentar e não ler. Sua memória com o livro Fumaça e Espelho, importante para seu desenvolvimento literário, narrativo e ficcional, é deturpada pela lembrança dos relatos dos abusos. “Sempre que eu ouvir o nome dele, eu vou lembrar das denúncias. É impossível não lembrar e separar as coisas”.
neil gaiman abusava de uma mulher lésbica enquanto ganhava dinheiro em cima da comunidade lgbt, e ainda tem gente mais preocupada com as séries do que com o caso
— lili. (@devilsminiion) January 13, 2025
Entendo, de verdade, que muita gente tá num conflito interno imenso em relação à obra do Neil Gaiman, mas é de uma falta de tato tenebrosa ver uma série de relatos de estupro e abuso emocional e imediatamente fazer isso ser sobre a sua relação parassocial com o abusador.
— מקס (@MaxALeite) January 14, 2025
ai gente dane-se a segunda temporada de sandman vai pro inferno o final de good omens a vida real das vítimas do neil gaiman sempre será mais importante que uns pedaços de papel e umas séries de tv. quem discorda que morra
— sophia ❄️ (@snowflakecurse) January 14, 2025
Apesar disso, acredita que fingir que Gaiman ou suas obras não existam é impossível. Um exemplo de um autor, agora lido por um olhar crítico, é H.P. Lovecraft, um escritor racista que refletia o preconceito nos livros, e um autor que se tornou referência no gênero terror no mundo todo. “Não dá para fingir que ele nunca existiu, eu não tenho esse poder, eu não posso fazer isso. Mas eu posso falar sobre ele tendo esse contexto, sabendo que tem um olhar racista, olhar pela perspectiva crítica, mas não vou ficar apoiando essas obras e pessoas“, afirma.
Entre ressignificar, ter um olhar crítico sobre a obra, deixar de ler e fingir que o autor nunca existiu, a decisão é bem pessoal. Uma das opções pode servir melhor para o seu caso, mas pode não ser tão útil para uma pessoa que tinha Neil Gaiman, J.K. Rowling ou até H.P. Lovecraft como ídolos na escrita.
Independente do caminho a seguir, Thiago tem um conselho que ele tenta lembrar a si mesmo sempre que grandes nomes da cultura são descobertos como pessoas ruins: há muitos livros a serem lidos ainda. “Eu acho que o meu apego literário é o de menos, eu consigo deslocar ele para outro lugar. Ele é o menor dos problemas, eu estou preocupado com as vítimas. Será que elas estão estão sendo perseguidas?”, lembra.
De escritores clássicos e modernos, gringos e brasileiros, de ficção, romance, crônica, terror… O que não faltam são novos escritores para descobrir e ficar obcecado. Sentimos muito se Neil Gaiman, por exemplo, era alguém admirado por você, mas essa pode ser a sua chance de desbravar novas histórias e se apaixonar por elas. Já pensou nisso?