O que você faz quando é adolescente e tem medo de ir para a escola? Provavelmente, nada. Até porque seus pais, de uma forma ou de outra, acabam te obrigando a ir para a aula. “Para de frescura”, eles costumam dizer. Talvez eles não desconfiem, e é importante que eles passem a ter consciência disso, mas muitos adolescentes têm medo de ir para o colégio porque não gostam do que vão encontrar por lá. Dielly Santos, de 17 anos, se identificaria com essa realidade se, no último dia 16, ela não tivesse se suicidado na escola em que estudava, em Icoaraci, no Pará. A estudante foi encontrada morta no banheiro. “Enforcamento”, apontam os laudos policiais. De acordo com a família da jovem, Dielly era vítima de bullying e gordofobia, e constantemente chamada de “lixo” e “porca imunda” pelos colegas, que gargalhavam após proferir tais ofensas.
Entre 2005 e 2015, a depressão cresceu 18%, segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde). Estima-se que, no mundo, mais de 300 milhões de pessoas vivam com a doença. O mesmo levantamento aponta que o suicídio é a segunda principal causa de morte entre jovens de 15 a 29 anos. Dielly virou estatística. Mas por que a escola, que é praticamente a segunda casa do adolescente e deveria ser um local seguro, está matando? Para Maria Beatriz Cytrynowicz, psicóloga formada pela PUC-SP, terapeuta, membro da Associação Brasileira de Daseinsanalyse e autora do livro Criança e Infância, publicado pela Editora Chiado, não existe uma resposta para essa questão. Contudo, muitas análises podem ser feitas e a maioria delas parte de um ponto em comum: as mudanças que ocorrem na adolescência, tanto as externas quanto as internas.
“A adolescência é uma época da vida de uma transformação radical marcada pelo desapego do ambiente mais familiar e pela escolha dos amigos e interesses. Assim, podemos entender como surge a grande importância do grupo de amigos ou colegas que, então, passam a ser a nova referência para aquele jovem que não é mais criança. A aceitação de si na adolescência passa pela referência do grupo”, explica Maria Beatriz. É por isso que, apesar de repetirmos que “você é a sua própria turma”, é tão tóxico e trágico quando um jovem não se encaixa em nenhum grupo. Se esses grupos passam a menosprezar o adolescente, o prejuízo é ainda maior! “Quando o jovem passa por manifestações de bullying, ele não pode compartilhar a nova referência daquele grupo e se isola. Na adolescência, o isolamento se mescla com um profundo sentimento de inadequação e rejeição de si pelo grupo tornado o principal lugar de referência, já que os pais não são mais o único parâmetro do dia a dia. Isso pode trazer um grande sofrimento”, esclarece a psicóloga.
Contudo, é importante ressaltar que nem todo adolescente que sofre bullying tem depressão, e nem toda pessoa que tem depressão se mata. “Não é o suficiente. Muitos sofrem, mas poucos se matam, por mais que os casos de suicídio estejam crescendo”, garante Cytrynowicz, que explica ainda que o suicídio tem origem no modo como a pessoa compreende a sua vida. “Para um adolescente, que está com o seu próprio futuro em questão, a falta de confiança pode ser insustentável e parecer definitivamente que não tem solução. Apesar do bullying, da depressão e do suicídio serem costumeiramente apresentados numa correlação, são coisas diferentes”.
Mas então por que os dados da OMS mostram que mais jovens estão dando fim à própria vida? Há muitas razões, mas talvez a maioria delas seja intensificada pela frustração. “Na atualidade, vivemos e propagamos as crenças de que ‘se você quer, você consegue’ e ‘faço o que eu quero, sou dono da minha vida’. Consequentemente, lidamos mal com nossas dificuldades ou limitações, como se elas fossem sinais de fraqueza. Assim, nos abalamos com desilusões e insucessos nem sempre insuperáveis”, analisa a terapeuta.
Além disso, as redes sociais podem não ser as grandes vilãs, mas são culpadas por muitas vezes propagar de forma intensificada os antigos e ultrapassados padrões impostos pela sociedade. Um deles, muito abordado por aqui, é o de beleza. Alguns dias depois da morte de Dielly Santos, vítima de gordofobia, Nara Almeida falecia após uma corajosa e intensa luta contra o câncer. A modelo, que estava em tratamento há algum tempo, não parou de receber elogios por sua magreza nem nos últimos dias de vida, quando já estava bastante debilitada. “Essa galera talvez não tivesse parado para pensar que ela estava magra porque estava doente. As redes sociais são um instrumento poderoso de propagação de ideias de pessoas muitas vezes não qualificadas para o que apregoam”, alerta Maria Beatriz Cytrynowicz. Se a magreza de Nara continuou a ser elogiada mesmo após a morte da modelo, que tinha mais de 4 milhões de seguidores no Instagram, o corpo da anônima Dielly também continuou a ser alvo de chacotas após o suicídio. “Acho que ela se matou com cabos de aço”, diz um usuário, fazendo referência ao peso da jovem. “Caramba, devem ter levado ela até o cemitério de guindaste” e “agora ela finalmente conseguirá emagrecer” foram outros comentários feitos na publicação sobre a morte da paraense.
Conversando com algumas adolescentes, percebemos que o movimento body positivity pode estar aumentando e ganhando cada vez mais adeptos, inclusive nas redes sociais, mas ele não chega a todas as pessoas. Nós, que temos conhecimento dele, ainda vivemos em uma bolha. Além disso, por mais que o movimento pregue a liberdade, a aceitação e o amor próprio a todos os corpos, temos que prestar atenção a um coisa: será que estamos dando lugar de fala para mulheres gordas que realmente precisam de movimentos como o body positivity para não terem um final como o de Dielly Santos? De que vale lutar contra a gordofobia se, na matéria, damos voz a meninas que não têm a vivência de uma mulher gorda, não passam pelos desafios que uma mulher gorda passa e se acham gordas por terem duas dobrinhas na barriga ao sentar? O body positivity é importante para todo mundo, homens e mulheres, independentemente do biotipo, mas o “falso” body positivity, que prega contra a gordofobia dando voz a “modelos plus size” que usam 40, só serve para mascarar ainda mais o problema.
A psicóloga Maria Beatriz Cytrynowicz, autora do livro Criança e Infância, finaliza a conversa mandando um alerta aos pais e aos adolescentes. Os primeiros devem manter aberta a possibilidade de conversas com seus filhos. “Saber distinguir o que pode representar perigo ou ameaça aos jovens e o que são padrões e condutas dais quais os adultos não gostam é um grande desafio”, sinaliza. Os segundos, em contrapartida, devem estar abertos a essas conversas e não terem medo de pedir ajuda. Não há vergonha nenhuma nisso. A terapeuta enumera ainda alguns passos para que a o jovem se blinde das toxidades do mundo: “(1) cerque-se de pessoas positivas, (2) acabe com o seu discurso de ódio contra você mesmo e contra outras pessoas, (3) valorize-se e (4) filtre os conteúdos que você consome na internet”. Pessoas com tendências suicidas não querem chamar a atenção. Muito pelo contrário! Elas costumam fazer tudo na surdina para que seu plano final dê certo. Dielly chegou à escola e, calada, quase como se fosse um fantasma perambulando por entre os alunos e funcionários, caminhou até o banheiro, onde deu fim à própria vida. O silêncio talvez seja um dos maiores sinais de alerta que um adolescente pode dar para uma doença também silenciosa, mas que pode ser intensificada por casos de bullying bastante barulhentos.