O caso da criança de 11 anos, que foi impedida temporariamente de realizar um aborto legal pela Justiça, continua repercutindo. Nesta quarta-feira (6), uma reunião da Comissão da Mulher na Câmara aconteceu para entender se a juíza Joana Ribeiro Zimmer, que fez perguntas tendenciosas para a vítima durante audiência, na tentativa de convencê-la a seguir com a gestação de risco, fruto de um estupro de vulnerável, e dar o filho para a adoção posteriormente, seria homenageada ou não.
Os deputados federais Chris Tonietto (PL-RJ) e Diego Garcia (Republicanos-PR) foram os responsáveis por apresentar o pedido de Moção de Aplausos e Reconhecimento, que é utilizado para louvar figuras que se destacaram na sociedade e contribuíram positivamente com ela de alguma forma.
🇧🇷 A reunião da Comissão da Mulher caiu durante a discussão do requerimento.
Deputadas de oposição – como Sâmia, Vivi Reis, Erika Kokay e Tabata Amaral – obstruíram e não deram quórum. Governo, que estava a favor da moção, não conseguiu mobilizar toda a base para a votação. pic.twitter.com/wNCioVtPWu
— Eixo Político (@eixopolitico) July 6, 2022
Enojada com o pedido, Sâmia Bomfim (PSOL-SP) perguntou para a deputada se ela não tinha vergonha de propor homenagear uma juíza que tentou prolongar a gestação de uma criança, mesmo que à contragosto dela e de sua família, e compartilhou informações falsas durante a audiência, como a fala em que compara o aborto legal ao crime de eutanásia no Brasil.
“A deputada está propondo homenagear a juíza responsável por colocar essa menina num abrigo, para que ela não pudesse ter acesso ao hospital, acesso à lei, que lhe dá o direito de interromper a gestação. É uma juíza que, por conta da sua ação, fez essa gestação durar mais semanas do que poderia, do que deveria“, falou Sâmia.
Para Chris Tonietto, que se classifica pró-vida e exibe uma foto sorrindo e segurando um feto de brinquedo nas redes sociais, “a esquerda é tão canalha que instrumentalizou o caso da menina de 11 anos para fazer palanque político para promover a cultura da morte”.
Em resposta à Sâmia, Tonietto disse: “Tenho vergonha de conviver com um grupo de pessoas que tem sede de matar, tem sede de sangue”. Para a deputada que propôs a moção, o crime de estupro não foi cometido, uma vez que, segundo ela, a relação sexual foi consentida.
Também nesta quarta, a promotora Mirela Dutra Alberton, que atuou junto do caso com Joana Ribeiro Zimmer, solicitou que a polícia buscasse os restos mortais do feto no hospital para que uma investigação para entender a “causa que levou à morte do feto” fosse iniciada, mesmo que judicialmente nenhum crime tenha sido cometido, uma vez que o aborto legal é garantido por lei em três situações: (1) gravidez que resulta de estupro, (2) anencefalia fetal e (3) gravidez que coloca em risco a vida da gestante. A reportagem é do The Intercept Brasil.
O que está na lei
Com relação ao caso em questão, é importante entender que, segundo o Art. 217-A do Código Penal, toda conjunção carnal ou ato libidinoso praticado contra menores de 14 anos é considerado estupro de vunerável, uma vez que o menor de idade não tem o discernimento necessário para a prática do ato. Ou seja, por mais que o crime tenha sido cometido dentro de casa e por alguém próximo à vítima, como um namorado, e mesmo que este namoro fosse autorizado pelos responsáveis do menor de idade, não há consentimento por parte da vítima, que é resguardada pela lei.
Aqui, vale ainda um adendo: de acordo com o mais recente Anuário de Segurança Pública, 70% dos casos de estupro que ocorrem no Brasil têm como vítimas crianças ou vulneráveis [pessoas que não estavam em condições de discernir e resistir ao ato sexual]. Em 84% dos casos, o estuprador era conhecido da vítima, sendo que a maioria dos crimes ocorre dentro do “lar, doce lar”. As meninas e mulheres negras são as mais suscetíveis a sofrer violências sexuais.
Portanto, relativizar episódios de aborto dizendo que o agressor era parceiro da vítima e que o crime ocorreu dentro da casa dela, e usar essas falas como possíveis justificativas, é ignorar as estatísticas e pautar o discurso em cima de algo que vai contra o que está no próprio Código Penal.
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Uma discussão sobre controle de corpos
Na manhã desta quinta-feira (7), enquanto tomava café da manhã escutando o rádio de lei que meu pai sempre deixa ligado na cozinha, me deparei com mais uma discussão acalorada na Jovem Pan sobre o caso da criança de 11 anos, sobre aborto legal e sobre o pedido de moção, que, por sinal, foi negado pela Comissão da Mulher na Câmara em votação.
A jornalista Cristina Graeml, comentarista da Jovem Pan News, bateu em diversos momentos na tecla de que o aborto não seria legal no caso da menina grávida de 11 anos (estuprada aos 10) porque a violência teria sido cometida pelo namorado da vítima, um menino de 13 anos, e que a relação era autorização pelos pais. Por ora, a polícia ainda não confirmou a informação, uma vez que a perícia ainda está analisando e comparando o DNA do adolescente. Ou seja, isso nem poderia ser afirmado, pois judicialmente ainda não passa de uma suspeita.
Como foi explicado anteriormente, praticar relações sexuais com menores de 14 anos configura estupro de vulnerável. Por mais que o debate sobre consentimento seja questionável em alguns cenários, em outros, principalmente aqueles envolvendo crimes contra a mulher, não há o que se discutir. “Diante de uma gravidez em menor de 14 anos, deve ser oferecida a opção da interrupção da gestação por ser decorrente de estupro, caso esse seja o desejo da menor. O atraso do tratamento coloca em risco a saúde das meninas e mulheres que já têm o direito garantido e provoca desnecessária insegurança jurídica aos profissionais de saúde. O consentimento da menor e a autorização de um dos pais ou responsável, em cumprimento à portaria GM/MS 2561/2020 são suficientes”, esclarece o professor Dr. Jadson Lener, médico ginecologista e obstetra, em entrevista para a CAPRICHO.
Para Mayra Cardozo, advogada, educadora e pesquisadora sobre gênero, mãe e filha sofreram um caso claro de violência psicológica durante a audiência divulgada pelo The Intercept Brasil, conduzida pela juíza Joana Ribeiro Zimmer e pela promotora Mirela Dutra Alberton, que inclusive desrespeitaram em vários momentos exposições do Estatuto da Criança e do Adolescente. Para a especialista, ambas foram manipuladas na tentativa de gerar angústia e sofrimento. “Além de não se ter respeitado o protocolo do Conselho Nacional de Justiça em relação ao atendimento e às audiências, que devem ser realizadas com a perpectiva de gêneo, e a Lei Mariana Ferrer, sancionada em 2021, que pune atos contra a dignidade de vítimas de violência sexual e das testemunhas do processo durante julgamentos”, explica a advogada.
Fora todas as questões legais que foram simplesmente ignoradas pelas autoridades, um segundo laudo médico mostrou que a criança de 11 anos poderia sofrer graves problemas de saúde caso a gestação fosse continuada. Inclusive, durante audiência, a médica obstetra Emarise Medeiros Paes de Andrade chega a listar algumas dessas adversidades, tanto físicas quanto psicológicas. Faz sentido se dizer pró-vida em um caso em que a gravidez, fruto de um estupro de vulnerável, coloca em risco a vida da vítima?
Se a mulher aborta: Ela é ASSASS!NA
Se a mulher entrega p adoção: Ela é PÉSSIMA mãe por “abandono”
Continua após a publicidadeSe a mulher decide ter os filhos: Ela é INTERESSEIRA por bolsa familia.
Vocês não são a favor da vida, vocês são contra a POSSIBILIDADE da mulher poder decidir#aborto #mulher
— Isadora Paula (@euisanazar) June 26, 2022
“Qualquer tentativa moralizante de impedir mulheres de interromperem uma gestação não é nada além de um odioso controle dos corpos femininos – e a compreensão de que filhos são punição por uma vida sexual ativa”, escreveu Lu Pinheiro, Cirurgiã Bucomaxilofacial, no Twitter.
O próprio Conselho Federal de Psicologia se posiciona a favor da descriminalização e legalização do aborto no Brasil, “pois entende que a defesa dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres faz parte da defesa dos seus direitos humanos”.
E caso você fique com alguma dúvida de que toda essa discussão é sobre o controle dos nossos corpos, saiba que, recentemente, uma cartilha lançada pelo Ministério da Saúde afirma que “todo aborto é crime no Brasil” e defende a “investigação policial” sobre esses casos – algo que vai, de novo, contra o Código Penal, que não exige comprovação do crime para que o aborto humanitário seja autorizado/realizado.
“O Ministério da Saúde editou uma norma técnica em que recomenda ‘limitar o ingresso para atendimento ao aborto previsto em lei com 20 semanas de idade gestacional’, porém o Código Penal brasileiro não estabelece limite de idade gestacional para os permissivos legais ao aborto induzido“, explica o Dr. Jadson, que reforça sua fala dizendo que: “Nos casos já previstos em lei (gravidez resultante de estupro, risco de vida à gestante e anencefalia fetal), não há necessidade de solicitar autorização judicial para o tratamento, nem há necessidade de boletim de ocorrência nem laudo do IML nos casos de estupro”.
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A burocratização do aborto legal é visivelmente mais uma tentativa do Estado de controlar os corpos das mulheres e compactuar com a cultura do estupro, que, no Brasil, faz uma vítima a cada oito minutos.
Além disso, é impossível não relacionar a questão de gênero à questão racial, uma vez que as principais vítimas de violência contra a mulher são jovens negras. Atualmente, segundo um estudo publicado pelo Made-USP (Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades da FEA-USP) em abril de 2021, 38% das mulheres negras se encontram abaixo da linha da pobreza no Brasil. 12,3% se encontram em situação de extrema pobreza.
Não é impossível conseguir realizar um aborto no país. Mas é algo inacessível, que custa caro. Ao dificultar o acesso ao aborto legal, você não só fere um direito da mulher como contribui para desnivelar ainda mais a sociedade desigual em que vivemos, em tantos sentidos, e que tantas vezes faz mulheres se colocarem em situações de risco por falta acesso, oportunidades e até mesmo respaldo da própria Justiça.
“O que compro pra alguém que fez um aborto?”#SexEducationNetflix pic.twitter.com/fJUo6vuJWh
— Sex Education Brasil (@BRSexEducation) January 16, 2019
Impossível também não citar o caso de Klara Castanho, que no dia 25 de junho publicou uma carta aberta contando que havia sido estuprada, engravidado do estuprador e decidido entregar a criança para a adoção voluntária. Apesar de legal, muita gente criticou a escolha da atriz, que ouviu inclusive de um médio que a atendeu, durante um exame de ultrassom, que ela seria obrigada a amar aquele bebê, pois ele tinha 50% de seu sangue. O trauma de uma vítima de violência contra a mulher é contínuo, uma vez que ela é julgada e culpabilizada por uma sociedade que estupra diariamente suas mulheres.
Como bem pontua a ilustração da artista queer norte-americana Sarah Epperson, que viralizou nas redes sociais durante a repercussão do caso da criança grávida de 11 anos, “você não pode banir o aborto; você pode apenas banir o aborto seguro” – e seguir causando danos à integridade física da mulher por meio do controle de seu corpo, que acaba virando mero objeto de discursos partidários, religiosos e sexistas, geralmente encabeçados por pessoas em situação de privilégio social (homens e mulheres cis, brancos e heterossexuais, por exemplo).