Por que ser fangirl incomoda tanto?

Manifestações sentimentais expostas sobre seu artista preferido é visto com escárnio em uma demonstração clara que preconceitos antigos ainda reverberam

Por Mavi Faria Atualizado em 29 out 2024, 15h15 - Publicado em 12 out 2024, 13h00
P

or que a imagem de jovens garotas, gritando de animação por um popstar é considerada louca, psicótica, assustadora e exagerada, mas a imagem de jovens meninos gritando por um jogador de futebol é perfeitamente normal? Esse questionamento foi feito pela roteirista e compositora Yve Blake, criadora do musical Fangirls, em um TED Talk de 2020.

Quatro anos depois, o cenário é o mesmo e a reflexão de Yve ainda se faz muito necessária. Nas redes, muitas jovens compartilham do mesmo sentimento e apontam o machismo presente nessa aversão das pessoas em relação às fangirls.

O termo ‘fangirl’ designa uma garota que é muito fã – ou até obcecada – por algo, e seu significado já abrangeu sentido mais negativos. Hoje, fangirls dos mais diversos tipos abraçam a nomenclatura com orgulho. No ano passado e início deste ano, a passagem da The Eras Tour pelo mundo acendeu ainda mais o sentimento único e envolvente de amar um artista como nada neste mundo, e encontrar, entre outras garotas e mulheres de diversas idades, acolhimento e liberdade para expor seus sentimentos como em nenhum outro lugar.

Essa liberdade exposta por essas garotas, no entanto,  pareceu incomodar e não foram raros comentários depreciativos acerca da empolgação, felicidade e amor para com a artista, neste caso, Taylor Swift – mas importante ressaltar, poderia ser qualquer astro aqui.

Esse período lembrou quão incomodada as pessoas ficam ao ver meninas chorando de emoção e felicidade, se dedicando para criar ou escolher uma roupa para a ocasião, se maquiar e movimentar montanhas para viver o seu momento máximo de fangirl. Sim, só por isso as garotas são chamadas por adjetivos como ‘imatura’, ‘histéricas’ e ‘infantis’.

Essa reação e julgamento tão pesado não faz sentido, como defende Yve no seu TED. Ainda no exemplo de concertos musicais, a situação, de forma simplista, é: jovens reunidos para vibrar, se empolgar, se emocionar, dentro de um estádio grande, por uma ou mais pessoas que estão performando um talento.

Continua após a publicidade

Se as características substituíssem meninas por meninos, show por jogo de futebol, o cenário continua muito similar, mas as palavras que definem esses jovens muda drasticamente, até porque, não é visto socialmente como algo imaturo um homem chorar por um time dentro do estádio “Meninos chorando no futebol? É o amor pelo jogo. Meninas chorando em um show do Justin Bieber? É patético”, diz Yve.

A roteirista ainda incita o questionamento sobre os reflexos que esse tipo de julgamento podem trazer às fangirls, até porque, “se as meninas crescem em um mundo onde palavras como louca, psicótica e histérica são usadas casualmente para descrever o entusiasmo feminino, como isso molda a maneira como essas meninas veem a si mesmas?”.

A carta da infantilidade, usada tantas vezes para humilhar fangirls, foi a inspiração para uma postagem de Alexia Brito, usuária do TikTok. No vídeo, ela está olhando para a câmera com feição de interrogação, com a frase”Pov: Quando alguém vem me falar que preciso parar de ser fã e virar adulta”, enquanto um áudio dizendo “Para porque isso é coisa de adolescente” toca ao fundo. A resposta dela é certeira na legenda da publicação: “me poupe né, desde quando tem idade para ser fã”.

@alexiabrito_

me poupe né, desde quando tem idade para ser fã #fangirl #fyp #shows #onedirection #ingressos #fy

♬ som original – thomas

Não tem idade, na verdade, mas o insulto de imatura parece perdurar por todo tempo em que a garota se expor como uma fangirl. Esse tipo de comportamento combativo, para a roteirista Yve, é munição para que meninas assumam serem menos capazes de racionalizar, de ter o mesmo respeito intelectual que os homens – aqui, o cenário é de fangirls, mas essa tentativa de propagar o rebaixamento feminino é uma tática machista antiga.

Continua após a publicidade

Por um tempo, um mecanismo de defesa feminino para assegurar respeito dos homens era o de se afastar de tudo o que fosse ligado estereotipadamente ao universo das mulheres e pudesse ser descrito como feminino – a cor rosa, gosto por vestido e roupas no geral, flores, e por aí vai, porque somente assim a capacidade intelectual seria levada a sério.

O filme ‘Legalmente Loira’, de 2001, trazia, de forma cômica e clichê, uma fatia da não relação entre inteligência e feminilidade. A protagonista Elle Woods, sendo a personificação estereotipada de uma jovem feminina, surpreende o restante dos personagens ao demonstrar uma inteligência que, de fora, parecia inexistente. Ainda hoje, mais de 20 anos depois, uma garota chorar de emoção e entregar todos os seus sentimentos em um show ou encontro de fãs diminui não só sua maturidade, mas também sua inteligênciafatores que não se interferem de forma alguma, em um pensamento racional.

A Juliane Ferraz chegou a compartilhar no TikTok como, para ela, todos os julgamentos e tentativas de diminuí-la por ser fangirl pioraram depois dos 20 anos, idade em que ela deveria ‘se tornar adulta’. Ela afirma que “é como se as pessoas anulassem toda sua inteligência e capacidade intelectual ao único fato de você ser fã de alguma coisa que eles julgam não ser para a sua idade”.

@jjulianeferrazz

não reprima sua skin fã 20+ 👍🏽 #kpop #pop #serfã

♬ som original – Juliane

Ainda no ano passado, com a estreia esmagadora de Barbie, os resquícios do preconceito machista de diminuir toda e qualquer manifestação feminina como sendo ridículo deu às caras novamente. Enquanto mulheres, em sua maioria, separavam uma roupa rosa do guarda-roupa para prestigiar o filme Barbie, escárnio era feito nas redes.

Uma grande comoção foi causada no X (ex-Twitter), onde muitas pessoas, em sua maioria homens, ridicularizavam e até levantavam pautas sobre consumismo acerca do ato de comprar uma roupa rosa para o filme, ou o de se arrumar para ir ao cinema – em contrapartida, quando fãs de filme da Marvel, por exemplo, vista como ‘pertencente ao universo masculino’, se vestem de heróis dos quadrinhos para uma pré-estreia, é algo totalmente aceitável e visto com respeito.

Continua após a publicidade

@jucostareis

Por que o nosso entusiasmo feminino é visto como exagero e dos meninos como paixão quando falamos de hobbies? 🤔 Desde cedo, somos julgadas por nossas paixões, e isso se reflete também na vida adulta, mesmo quando já pagamos nossos boletos e podemos bancar nossas paixões e ingressos de shows. 🤷🏻‍♀️ Vamos repensar esses estigmas? Confira o TED Talk ‘For the love of fangirls’ por Yve Blake, completo no YouTube. #Reflexão #Fangirls #TedTalks #kpop #army #yveblake #vidadefã

♬ som original – Júlia

Ser fangirl e assumir os seus gostos e seus sentimentos – assim como outras demonstrações mais femininas – incomodam tanto porque vão de encontro a preconceitos antigos e formulações sociais ainda combatidas (infelizmente, o machismo ainda existe e se reinventa). Yve ainda afirma no Talk que um outro motivo do incômodo sobre fangirls é que elas “sabem amar algo sem desculpa ou medo”. 

“Por que eu deveria esconder meus sentimentos? Porque eles incomodam você? Ou porque não é o que os meninos fazem? Por que as fangirls devem se conter? Porque são loucas? Ou porque nossa definição do que é razoável é baseada no que é aceitável para os homens fazerem?”, questiona.

Publicidade