Vivemos um período de intensa polarização no Brasil, o que não é novidade. Ao longo da história, já tivemos momentos em que as coisas ficaram bastante polarizadas, geralmente motivados por crises políticas, que podem ser intensificadas por outras questões, como de saúde pública (com a pandemia de coronavírus, no caso atual). E se você acha que política é coisa apenas de político e que personalidades da mídia, como atores, cantores e atletas, não devem se envolver ou misturar as coisas, você está muito enganado.
Às vezes, a gente escuta dentro de casa que é melhor não se engajar nesses assuntos ou que atletas, por exemplo, deveriam focar no esporte – e acaba reproduzindo esses discursos por aí. Recentemente, a jogadora de vôlei Carol Solberg foi advertida pelo Superior Tribunal de Justiça Desportiva por gritar um “Fora, Bolsonaro!” durante entrevista. O Comitê Olímpico Internacional também proibiu que manifestações políticas fossem realizadas nas Olimpíadas de Tóquio de 2020, que começam no próximo mês. Segundo o COI, “a missão dos Jogos Olímpicos é unir e não dividir”. Só que uma competição pode continuar sendo pacífica mesmo tendo demonstrações de descontentamento com regimes políticos, ainda mais quando estamos falando do democrático.
A relação entre esporte e política é antiga e proibir tais manifestações é praticamente apagar parte da história. Em 1936, durante os Jogos de Berlim, o velocista negro Jesse Owens se negou a fazer a saudação nazista em direção à tribuna de Adolph Hitler, que tentava usar as Olimpíadas como propaganda do regime totalitário, que pregava a supremacia branca. Alguns anos mais tarde, em 1968, nas Jogos Olímpicos da Cidade do México, Tommie Smith e John Carlos, respectivamente medalhas de ouro e bronze nos 200 metros, subiram ao pódio vestindo luvas pretas e ergueram as mãos para o alto com os punhos fechado reverenciando os Panteras Negras, que lutavam contra a segregação racial nos Estados Unidos. Pelo gesto, os atletas foram expulsos da Vila Olímpica. O protesto de Jesse Owens foi menos evidente e por isso não teve consequências, mas será que em ambos os casos a neutralidade, tão apreciada pelo Comitê Olímpico Internacional, seria mesmo a melhor resposta em meio ao cenário político mundial? Afinal, esses atletas entraram para a história não somente pelos seus feitos esportivos, mas também por impactarem a vida de tantas pessoas com seus protestos realizados num local cujos holofotes estavam todos apontados.
Na última segunda-feira, 21, a cantora Anitta, de quem sempre cobram posicionamentos, deu no Twitter a seguinte declaração: “500 mil mortes. É sobre fora, Bolsonaro, sim! A favor da democracia, da economia, da saúde, da educação, do senso coletivo”, escreveu. Na sequência, ela disse que já estava sendo atacada por fanáticos defensores do presidente da República, que tentavam agredi-la com um insulto bem 5ª série, e típico deles, pedindo para ela retocar a tatuagem que fez há algum tempo nas partes íntimas (mais precisamente, no ânus). “Quando desbotar, eu retoco, porque é linda (duvido que os machão não iam adorar)… Até porque, o cara [Bolsonaro] tá empurrando no c* de vocês sem pena e vocês ainda vão para a rua de motoca pedir mais“, rebateu.
A declaração da Anitta aconteceu em um mesmo momento em que Ivete Sangalo também se pronunciou sobre os mais de 500 mil mortos vítimas da Covid-19 no Brasil. Só que a cantora baiana preferiu se manifestar prezando pela tal neutralidade: “Não é natural. Não é uma mentira. É estarrecedor pensar sobre milhares de vidas ceifadas e dores irreparáveis em torno dessas perdas”, escreveu no Instagram, terminando o recado com um: “Não é sobre partidos, é sobre humanidade”.
O exemplo em questão, sobre Anitta e Ivete, está longe de tentar promover uma rivalidade feminina entre cantoras. Também vale reforçar que é só um exemplo – basta fazer uma simples pesquisa no Google para encontrar outros pronunciamentos de famosos que realmente se posicionaram ou que ficaram em cima do muro para engajarem, mas não perderem público). Só que ele é bastante didático, então vamos avaliar alguns contextos para compreender as diferenças entre eles:
- é inegável que o Brasil é governado por um presidente negacionista, que desde o começo de seu mandato, antes mesmo da pandemia de coronavírus, já minimizava a importância da ciência e da educação, cortando inclusive verbas destinadas a pesquisas;
- durante a CPI da Covid, foi divulgado que o Governo Bolsonaro deixou laboratórios farmacêuticos sem respostas e recusou 70 milhões de doses da vacina da Pfizer só em agosto, além de 60 milhões de doses da CoronaVac, em 2020;
- Jair Bolsonaro já deu declarações polêmicas sobre as medidas de combate ao coronavírus, dizendo que máscara de proteção era “coisa de viado”, que gostaria de revogar sua obrigatoriedade, que era completamente contra qualquer tipo de lockdown e que as coisas tinham que “voltar ao normal” de qualquer jeito, caso contrário, recorreria às Forças Armadas;
- segundo estudo realizado pelo Instituto Lowy, localizado em Sidney, na Austrália, o Brasil fez a pior gestão do mundo na pandemia. Para o renomado jornal The Washington Post, Jair Bolsonaro foi o pior líder mundial a lidar com o coronavírus;
Atenção: esses são dados apenas relacionados ao contexto da pandemia. Não fomos além e jogamos na roda dados comprovados (veja, não são fake news de WhatsApp) sobre corrupção, por exemplo, envolvendo a família Bolsonaro. Lembrando também que é possível ser contrário ao governo atual e continuar sem ser petista.
“Como você pode ser um artista e não refletir os tempos?”
Pra quem diz que cobrar posicionamentos é inútil: ou você escolhe seguir pelo caminho de Nina, ou você cria uma crise de imagem numa carreira e passa a ser conhecida com Isentona.pic.twitter.com/IDDoOtnsr3
Continua após a publicidade— loris (@lorispereiraa) June 21, 2021
Quando a gente fala que “não é sobre partidos”, no máximo, podemos nos referir ao fato de que Jair Bolsonaro é hoje um político sem partido. Agora, usar a desculpa da humanidade para não querer comprar uma briga, mascarar um pensamento ou atitude, mesmo que do passado, ou emitir um comunicado neutrozão na atual circunstância do país é muitas vezes compactuar com o cenário atual. E se essa for a mensagem que ele deseja passar, ou seja, se a omissão dele for um posicionamento, hoje, ele pode, sim, ser entendido como contrário à vida.
Se o seu ídolo ou aqueles artistas que você tanto gosta não se manifestaram no último ano e preferem continuar isentões em meio a discussões que envolvem vidas, sejam elas sociais, raciais, econômicas, educacionais, políticas ou culturais, talvez quem esteja precisando se posicionar sobre isso seja você. Não aceite mais uma neutralidade vinda de pessoas que poderiam usar a voz e a fama para fazer uma baita diferença no mundo!