Sentença do caso Mari Ferrer abre precedentes que ferem (mais) as vítimas

André Camargo de Aranha, acusado do estuprar Mariana Ferrer, foi inocentado por Erro de Tipo; vítima foi inadequadamente exposta na parte processual

Por Isabella Otto Atualizado em 9 nov 2020, 11h37 - Publicado em 3 nov 2020, 16h22

Depois de meses lutando arduamente contra o sistema, nas palavras da própria vítima, após denunciar um caso de estupro na Justiça, Mariana Ferrer, de 23 anos, recebeu, na segunda semana de setembro, a notícia de que André Camargo de Aranha, acusado de estuprar a jovem em uma famosa casa noturna de Santa Catarina, em 2018, foi inocentado. Quem bateu o martelo foi o juiz Rudson Marcos, que acatou a posição do promotor Thiago Carriço de Oliveira, que alegou, segundo reportagem do The Intercept, que o estupro foi “sem intenção”.

Twitter/Mari Ferrer/Reprodução

A CAPRICHO teve acesso à sentença e, para a Justiça, não foi possível comprovar que Mariana não estava em condições de consentir o ato sexual, levando em conta exames toxicológicos realizados, que não apontaram a presença de álcool e drogas no sangue da vítima, como alega a defesa. “Mariana foi dopada para depois ter sido estuprada. Essa é mais uma prova relevante”, afirmou a Dra. Jackie Anacleto, advogada de Ferrer. Outro posicionamento do promotor Thiago Carriço, acatado pela Justiça, é o de que a garota deixou em determinado momento da noite o Cafe de La Musique e foi para outro beah club, sem demonstrar sinais de embriaguez, tendo como base as imagens das câmeras de segurança da Polícia Militar. Outra questão é com relação ao fato de Mariana ter conseguido pedir um Uber e trocar mensagens com as amigas no espaço de tempo em tudo teria ocorrido. Para a promotoria, uma pessoa com a percepção alterada, seja por álcool ou drogas, não teria condições de fazer isso. Todas essas teses foram levadas em conta pelo juiz responsável pelo caso, resultando na absolvição do empresário André Aranha por fala de provas, como consta na sentença, e na anulação do crime de estupro de vulnerável.

A advogada Evelyn Massetti esclarece que o Código Penal não prevê crimes de “estupro culposo”: “Apesar de a publicação [do The Intercept] mencionar a tese de ‘estupro culposo’, não há na manifestação do Ministério Público pedido nesse sentido nem qualquer menção na sentença à expressão. Uma das teses apontadas pelo MP para pedir a absolvição [de André Aranha] é a de Erro de Tipo, declarando que o réu não tinha como saber da vulnerabilidade da vítima”, aponta a especialista. De acordo com o Art. 20, isso acontece quando “o agente ignora a presença de um elemento essencial do tipo e acaba praticando conduta típica”. Por exemplo, um episódio em que um Erro de Tipo pode incorrer é quando alguém se relaciona com uma menina com menos de 14 anos, mas acredita que ela era maior de idade.

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Foi essa a tese que o MP defendeu nas alegações finais, não excluindo o fato de que o empresário teve relações sexuais com a jovem, já que provas legais apontaram a presença de sêmen nas roupas íntimas da modelo, mas que não tinha como ele saber que Mariana estava em um estado vulnerável, sem condições de consentir. “Nos casos de Erro de Tipo, o Código Penal prevê duas possíveis consequências: se esse erro era inevitável, ou seja, não tinha como o autor evitar, se exclui o dolo e culpa; se era possível evitar, se exclui o dolo e se pune na modalidade culposa, se houver previsão legal. Não havendo previsão legal, o réu deve ser absolvido”, dá Evelyn o entendimento legal do assunto.

Valéria Scarence, promotora que inclusive tocou o projeto “Namoro Legal” do Ministério Público de São Paulo em parceria com a CAPRICHO, em 2019, diz que a sentença do Caso Mari Ferrer abre precedentes que podem dificultar ainda mais a situação de vítimas de estupro na Justiça. Lembrando que, no Brasil, apenas 35% dos crimes de estupro são denunciados em delegacias e, deste número, somente 6% viram ação penal, segundo estimativa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “Denunciei centenas de processos de estupro, mas em nenhum dos meus casos me deparei com uma alegação como essa, é bastante diferente do que acontece nos processos de estupro”, disse a promotora para o The Intercept. Para ela, os vestígios de álcool e droga no sangue desaparecem rapidamente, por isso os laudos pericias costumam dar negativo para a presença de tais substâncias, e que “os tribunais costumam ter posicionamento firme pela consideração da palavra da vítima como prova de estupro”.

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É inegável que o desenrolar do caso de Mariana Ferrer abre precedentes para que crimes de estupro sejam desqualificados, além de “dificultar a demonstração desses crimes”, como pontua a promotora Valéria. Fora isso, Ferrer foi muito exposta na parte processual do caso, o que está longe de ser o ideal, levando em conta inclusive questões legais, independente do direito de defesa do réu. “Em nenhum momento a vítima pode ser re-vitimizada e culpabilizada como ela foi. Claro que podem existir motivos pelo qual a pessoa deve ser absolvida (ex: conjunto probatório insuficiente), mas outra coisa é o uso de generalizações espúrias e apelos para estereótipos morais de gênero, pelo que mostram os vídeos [em que Cláudio Gastão da Rosa Filho, advogado de defesa de André Aranha, diz que Mariana tem um “choro dissimulado, falso” e uma “lábia de crocodilo”]“, garante a advogada Evelyn Massetti.

O POSICIONAMENTO DA DEFESA DE ANDRÉ ARANHA

Na noite da última terça-feira, 3, após a repercussão da sentença na internet, o Senado aprovou por unanimidade um voto de repúdio aos envolvidos no caso: o advogado de defesa de André Camargo de Aranha, Cláudio Gastão da Rosa Filho, o juiz Rudson Marcos e o promotor Thiago Carriço do Oliveira. Para o Congresso Nacional, eles distorceram o fato de um crime de estupro, “expondo a vítima a sofrimento e humilhação”.

Em nota para o jornal O GLOBO, Gastão da Rosa Filho disse que as falas do vídeo que circula dele nas redes sociais, do último julgamento do Caso Mari Ferrer, foram descontextualizadas: “Foi uma audiência longa, pegaram minha fala descontextualizada e editada, e tentaram me pintar como se eu estivesse desrespeitando uma suposta vítima de estupro e, na verdade, eu estava exercendo meu papel”, disse.

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OS PRECEDENTES JÁ ABERTOS

Em meio às polêmicas envolvendo todo o caso de Mariana Ferrer e sua sentença, um podcast vem sendo muito falado nas redes sociais. Praia dos Ossos conta a história da socialite Ângela Diniz, que foi assassinada em 30 de dezembro de 1976, numa casa de praia localizada em Búzios. O crime foi cometido por Doca Street, até então namorado da vítima. Nos três meses que se passaram entre o crime e o julgamento, o assassino acabou se tornando vítima, num caso amplamente divulgado pela Imprensa, que teve como foco não o crime em si, mas a moral sexual feminina.

O caso de Ângela Diniz teve dois julgamento, sendo que, no primeiro deles, Doca Street foi condenado a 18 meses de prisão pelo assassinato e seis meses por ter fugido do local do crime. Como ele já havia cumprido um terço da pena, pois ficou detido até o dia do julgamento, a Justiça o liberou na sequência. O juiz também acatou a tese da defesa de Doca, que dizia que a vítima teria sido responsável pela violência sofrida, sendo que Street, até então namorado de Diniz, teria agido em legítima defesa. O fato de Ângela ser dependente química e o passado amoroso dela [que já havia se relacionado com vários homens, alguns inclusive envolvidos em crimes] foi duramente levado em conta e pesou mais do que o fato de ela ter sido assassinada.

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O movimento feminista organizou uma série de protestos para honrar a memória da mulher vítima de feminicídio. Como a defesa de Doca Street disse que ele havia “matado por amor”, as feministas criaram o slogan “quem ama não mata”. Essa narrativa se assemelha muito à apresentada pela 2ª temporada de Coisa Mais Linda, série da Netflix, em que a personagem Lígia (Fernanda Vasconcellos) é morta pelo marido (Gustavo Vaz), que usa o passado da vítima e o fato de ela ser uma mulher livre, levando em conta os padrões da época, ainda mais machistas do que são hoje, para se eximir da culpa e dizer que matou porque amava demais e precisava prezar por sua honra.

Evandro Lins e Silva atuando na defesa de Doca Street, que matou Ângela Diniz, à direita na imagem Sebastião Marinho/ O GLOBO/Reprodução

Na sequência, um novo julgamento foi realizado, em 1981, e Doca Street foi condenado a 15 anos de prisão. A justiça – se é que assim podemos dizer – só foi feita, contudo, porque houve uma movimentação muito grande por parte das pessoas que acompanhavam de fora o caso, em especial das feministas, que não se calaram, nem mesmo após a primeira sentença dada ao assassino. Apesar de ser um caso envolvendo um suposto crime de estupro, não de feminicídio, é impossível não traçar paralelos com a história atual de Mariana Ferrer, que teve fotos pessoais da época em que trabalhava como modelo utilizadas pela defesa de André Camargo de Aranha para desvalidar sua palavra como mulher, colocando a moral sexual feminina e o machismo novamente à frente do tribunal. Mas, se depender do engajamento das pessoas nas redes sociais, o caso está longe de cair no esquecimento.

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