À frente da revolução: Esse ainda é o lugar de Lilith Cristina
Aos 15 anos, ela ajudou a liderar uma das maiores manifestações da história recente do país: a ocupação das escolas.
política sempre foi assunto recorrente na casa de Lilith Cristina, hoje atriz e música –a mãe é militante política há décadas e o padrasto, fotojornalista, trabalha cobrindo manifestações de rua. Na adolescência, ela começou a acompanhar algumas discussões importantes que surgiam nas redes sociais – como feminismo e negritude – mas, aos 15 anos, se viu à frente de um dos maiores movimentos políticos da história recente do Brasil: o movimento secundarista, que ocupou dezenas de escolas em protesto contra a reforma do Ensino Médio proposta pelo então governador de São Paulo, Geraldo Alckmin.
“Quando aconteceu aquele primeiro levante contra o aumento das passagens, em 2013 [a gente te explica tudo aqui], meu padrasto estava trabalhando na linha de frente e foi atingido no olho esquerdo com uma bala de borracha. Ele perdeu a visão justamente do olho que usava para fotografar. Foi um episódio marcante em que a política transbordou para dentro da minha família”, lembra em entrevista à CAPRICHO.
“Depois, as coisas foram ficando cada vez mais tensas. E eu estava ali, acompanhando as discussões acontecendo dentro de casa”.
Em 2013 e 2014, as manifestações do Movimento Passe Livre; em 2015, de mulheres engajadas contra um projeto de lei de Eduardo Cunha que dificultaria o acesso a pílulas do dia seguinte; em 2016, discussões acerca da maioridade penal. Esses dois últimos, Lilith conta, essenciais para que começasse a conhecer e se identificar com movimentos feminista e negro.
O interesse dela por política e movimentos sociais extrapolou o Facebook, que era a rede social mais usada na época. Por volta dos 14 anos, começou a frequentar protestos de rua. Na mesma época, começaram as discussões –nos jornais, nas ruas e também dentro das salas de aula– a respeito da reforma do Ensino Médio.
A proposta do governo do Estado, então comandado pelo PSDB, era unificar todas as escolas de ciclos mistos (ou seja, que tinham alunos do Ensino Infantil ao Ensino Médio) em escolas de ciclo único (apenas de Ensino Médio, por exemplo). Essas mudanças causariam o fechamento de mais de 90 escolas, mudariam a vida de 300 mil estudantes e, claro, desagradavam professores e alunos, que não foram consultados sobre a reforma.
A Apeoesp (Associação dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo), na época, se manifestou oficialmente contra a reforma, alegando que, se fosse implementada, professores seriam demitidos e unidades seriam precarizadas. Por esses motivos e também por aumento de salário, professores entraram no que seria uma das maiores greves da categoria, com 82 dias de paralisação, fortemente reprimidas pela política, e quase nenhuma conquista.
Meses depois, em novembro, começaram as manifestações dos estudantes secundaristas: alunos da zona oeste, os primeiros a se mobilizar, travaram as ruas próximas e ocuparam suas escolas. Em resposta, também começaram a sofrer a mesma repressão policial que os professores sofreram durante a greve.
“A discussão começou a ficar inflada. Primeiro os professores apanhando, depois os alunos apanhando? Acho que as pessoas perceberam: tinha algo errado acontecendo na educação púlica”, lembra Lilith, que à época cursava o primeiro ano do Ensino Médio.
“Não tem arrego!”
Quando as primeiras ocupações aconteceram, ainda havia muita repressão da direção aos professores e aos alunos na escola em que estudava, a Escola Estadual Maria José, no centro de São Paulo: “Era quase proibido falar sobre greve, reorganização das escolas, mas alguns professores ousaram tocar no assunto. Um deles abriu o espaço da aula para os alunos discutirem o assunto e esse foi um pilar importante para a gente começar a se organizar”.
Ela começou a trocar mensagens com outros alunos que também acreditavam que, como outras mais de 40 escolas àquela altura, a Escola Estadual Maria José deveria ser ocupada. O grupo era pequeno: cerca de 15 pessoas.
“Achei que seria impossível ocupar porque eram poucos alunos favoráveis”. Mas, na madrugada de 25 de novembro de 2015, esses cerca de 15 alunos se reuniram em uma praça próxima munidos de cartazes, canetões, tinta, correntes e cadeados. “Ainda estava escuro quando pulamos os primeiros portões e colocamos faixas na entrada da escola com as frases ‘MAZÉ OCUPADA’ e ‘NÃO TEM ARREGO’”.
Foi nas ocupações que eu decidi parar de alisar meu cabelo e raspar a cabeça, para fazer uma transição capilar.
Lilith Cristina à CH
Pouco antes do horário em que a escola normalmente abria as portas, a direção chegou, deu de cara com as portas trancadas pelos alunos, e a polícia foi acionada.
“Começou uma grande confusão, até a gente conseguir um microfone, uma caixa de som, e convencer os alunos que chegavam para a aula que estávamos ali por uma causa maior, que qualquer transtorno era pequeno perto da possibilidade da escola ser fechada no ano seguinte”, conta. “Com isso, mais alunos foram entrando e se juntando a nós, do lado de dentro da ocupação”.
A escola ficou ocupada por cerca de 40 dias. Esse período foi crucial para Lilith se tornar quem é agora, já adulta. “Sem que eu percebesse, algumas transformações já estavam acontecendo dentro de mim. Mas foi nas ocupações que eu decidi parar de alisar meu cabelo e raspar a cabeça, para fazer uma transição capilar. Ali eu entendi mais sobre negritude e feminismo, entendi que eu não precisava me submeter a nenhum padrão estético. Aprendi a falar em público, me colocar com firmeza nos espaços. E também me encontrei como artista. Nas ocupações, conheci outros artistas que também eram estudantes e estavam ocupando suas escolas, como eu. Eles são meus amigos até hoje”.
Os 40 dias de ocupação, no entanto, não gravaram só lembranças boas na memória de Lilith: esse período intenso também foi marcado por violência e muita apreensão. Em uma das tentativas de reintegração de posse da escola, ela viu os amigos sendo duramente reprimidos pela polícia e foi agredida pelo então diretor da escola.
“A polícia tentou desocupar a escola à força. Foi um show de covardia, apanhamos, tentaram nos arrastar para fora. Havia uma quantidade absurda de policiais cercando a escola, marretando os portões”, descreve. “Eu gritava para não agirem com violência, até que o diretor veio na minha direção e me deu um tapa no rosto. Foi uma grande confusão. Meus colegas tentaram me defender e a polícia agiu com ainda mais violência. Foi um pesadelo”.
O que intimidou os policiais e a direção da escola, lembra a atriz, foi a presença da imprensa na escola. Na época, vídeos das agressões circularam nas redes sociais e em telejornais. Com isso, a força policial recuou e a ocupação continuou por mais alguns dias. “Sentamos no chão, demos os braços uns aos outros e falamos: ‘vamos ficar”.
Após quase dois meses de manifestações e cerca 200 escolas ocupadas, o então governador Geraldo Alckmin voltou atrás e desistiu de aplicar a reforma –no mesmo dia em que uma pesquisa Datafolha mostrou que sua popularidade do tinha alcançado o menor índice já registrado.
Protagonista da própria história
Passados mais de sete anos desde que pulou os muros da escola, Lilith Cristina diz que faria tudo de novo “sem dúvida nenhuma”, mas pondera: “Não dá para romantizar nada do que aconteceu”.
“Tive que mudar de escola, porque foram meses de perseguição da direção e de alunos conservadores, que começaram a se filiar a partidos conservadores, ficavam fotografando a gente na escola e mandando nos grupos deles, nas redes sociais. Tenho muitas amigas que adoeceram mentalmente nesse processo. Por isso, não posso dizer que tem que ir lá e fazer, que é maravilhoso. Não é”, afirma, aos 22 anos.
Questionada sobre o que diria a jovens de 15 anos hoje, descontentes com desigualdade ou que estão diante de uma decisão que consideram injusta, Lilith fala sobre a importância de “saber se colocar, tomar decisões, dizer sim e dizer não”.
Ali eu entendi mais sobre negritude e feminismo, entendi que eu não precisava me submeter a nenhum padrão estético.
Para ela, o mais importante não é protagonizar um grande movimento popular, paralisar a escola, enfrentar a polícia, mas promover movimentos nos que permitam sonhar e realizar –de preferência de forma coletiva.
“É importante fazer escolhas que nos levem a uma vida mais digna. Isso pode significar muitas coisas, como romper imposições sobre o seu corpo e a sua aparência, se impor em relação ao que comer, ao que vestir, acredita. “E tem que estudar. Estudar é importante para fazer escolhas e ser protagonista das próprias histórias”.
– O documentário ‘Espero tua Re(volta)’, Eliza Capai mostra como foram as ocupações do ponto de vista dos estudantes, viu?
– O também documentário ‘Ocupar e Resistir’ retrata as ocupações nas escolas de São Paulo e vale muito a pena assistir.
– Em 2018, aqui na CAPRICHO, lançamos o documentário ‘O Seu Lugar: Um Documentário sobre Coletivos Feministas Estudantis.