Apenas a formação de um Estado palestino pode acabar com a guerra
Mas isso depende - e muito - de apoio internacional.
Em outubro de 2023, o mundo ficou chocado ao ver a série de ataques que o grupo extremista Hamas fez contra a população de Israel. Com centenas de mortos, milhares de feridos e outros tantos sequestrados e levados para a região da Palestina, começava ali mais uma guerra – que, na verdade, já dura mais de 70 anos (vem saber mais aqui.)
De outubro para cá, vimos muita coisa acontecer nesse conflito. O que parecia ter começado como uma retaliação de Israel contra o Hamas, ganhou ares complexos e passou a ser chamado por muitos de “genocídio”.
Mas, antes de escolhermos lados ou entrarmos em (mais) uma discussão nas redes sociais sobre o assunto, vamos entender o que, de fato, está acontecendo e quais são as possíveis soluções? Já adiantamos que, especialistas ouvidos pela reportagem da CAPRICHO afirmam que a única saída é a aceitação, por parte de Israel, da criação de um Estado palestino.
Espanha, Irlanda e Noruega oficializam na última terça-feira (28) o reconhecimento da Palestina como um Estado, uma decisão que provocou a indignação de Israel. Pois é.
O governo israelense, em resposta, convocou os embaixadores nos três países e acusou o primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, de ser “cúmplice de incitação ao assassinato do povo judeu”.
O reconhecimento é uma “necessidade para alcançar a paz” entre israelenses e palestinos, além de ser “uma questão de justiça histórica” para o povo palestino, afirmou Sánchez em um breve discurso em espanhol e inglês.
Um pouco de contexto sobre a guerra entre Israel e Hamas
Não dá para falar sobre esse conflito sem voltar alguns (muitos) anos na história daquela região. O que chamamos hoje de Israel e Palestina é, na verdade, uma área do Oriente Médio originalmente povoada pelos palestinos, que foi colonizada pelo movimento sionista – isto é, do povo judeu –, que surgiu no final do século XIX.
E, ao contrário do que muita gente pensa, essa história tem pouco a ver com religião. “O movimento sionista, em aliança com o imperialismo do momento (Grã-Bretanha depois da Primeira Guerra Mundial e, hoje, os EUA), visava a conquista da terra e do trabalho na Palestina histórica, através do que eles chamavam de transferência populacional – ou seja, imigração de judeus da Europa do Leste e Central para a Palestina e expulsão dos palestinos nativos não judeus para fora das suas terras via limpeza étnica”, explica Soraya Misleh, jornalista palestino-brasileira, mestre e doutora em Estudos Árabes pela Universidade de São Paulo (USP).
O objetivo com esse movimento era claro: um estado étnico e homogêneo, de maioria judaica – no que também é chamado de “colonização por povoamento”. Mas não para por aí. Em novembro de 1947, dois anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial, a Assembleia Geral das Nações Unidas recomendou a partilha da região conhecida como Palestina em um estado judeu (56%) e outro árabe (44%), em uma sessão presidida pelo diplomata brasileiro Osvaldo Aranha. O plot twist? Os habitantes nativos nunca foram consultados sobre o assunto.
“Foi o sinal verde para que os planos de limpeza étnica do movimento sionista fossem executados”, continua Soraya. “Doze dias depois da recomendação da assembleia da ONU, começou a fase mais agressiva da expulsão dos palestinos. O resultado foi a Nakba, catástrofe palestina com a expulsão de 800 mil palestinos de suas terras (2/3 da população local) e destruição de mais de 500 aldeias palestinas para a formação do Estado de Israel em 15 de maio de 1948.”
A família de Soraya, aliás, sentiu na pele esse momento histórico. A aldeia do seu pai, com 13 anos na época, foi cercada por 3 lados, deixando apenas uma saída para os seus 2 mil habitantes. Aqueles que não fugiram, eram mortos pelo bombardeio às regiões centrais da aldeia.
Ok, mas por que Israel foi criado?
Israel surgiu sobre 78% do território histórico da Palestina em um projeto de limpeza étnica planejada, avançando até mesmo para além do que recomendava a resolução da ONU de 1947.
A justificativa para isso era que, considerando o histórico do povo judeu e os constantes ataques sofridos ao longo da história (os chamados “pogroms”), principalmente na Europa, essa população sentia a necessidade de ter um Estado próprio, e não via a possibilidade de ser assimilada por outros povos.
“De fato, havia muitos pogroms e discriminação”, continua Soraya. “E muitos revolucionários lutavam contra isso. O movimento sionista era absolutamente minoritário na sua origem, reacionário, e buscava a colonização de uma terra para criar um estado nacional.”
De acordo com a especialista, cogitou-se a criação desse estado em países como a Argentina e a Uganda, mas a Palestina foi a terra escolhida pelo I Congresso Sionista Mundial, na Basiléia, Suíça, em 1897.
“A Palestina atendia aos interesses estratégicos das potências coloniais europeias, já que é local de trânsito de mercadorias entre África, Ásia e Europa no coração do Oriente Médio, rico em petróleo”, explica. “O imperialismo, assim, dominaria a região e suas riquezas, através de um parceiro, o sionismo, às custas das vidas palestinas.”
É por isso também que, de forma literal, a Palestina não é um país, mas um território, dividido em pedaços de terra limitados (como a Faixa de Gaza e a Cisjordânia) por conta do apartheid e da colonização. Ao contrário, Israel, por conta dos acordos internacionais, declarou a sua independência e foi reconhecido por outros países como tal, em 1948. Os palestinos, desde então, lutam pelo seu estado e pela libertação nacional.
E o Hamas, hein?
Com esse contexto em mente, vamos falar do que gerou essa nova onda de conflitos? O Hamas é um partido político de orientação islâmica, fundado em 1987. Originalmente, esse partido tentou ser o interlocutor do povo palestino para o mundo, mas, como você pode imaginar, essa missão se perdeu há tempos.
“Documentos recentemente divulgados mostram que, já em 1967, o primeiro-ministro israelense Levi Eshkol considerava a possibilidade cortar o acesso de Gaza à água como instrumento para forçar os palestinos a abandonar a região”, explica Darlan Montenegro, cientista político e professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
“A frustração das promessas dos acordos de Oslo, em 1993, especialmente a recusa de Israel em permitir a formação de um Estado palestino, fez com que crescesse o descontentamento com a liderança palestina tradicional, a OLP, e sua corrente majoritária, o Fatah, e permitiu que o Hamas ganhasse as eleições legislativas de 2006.”
Ele diz ainda que o Fatah não aceitou o resultado, e as duas correntes entraram em conflito. Na prática, Gaza tem sido governada pelo Hamas, que tomou o território à força, desde então, e a Cisjordânia, pelo Fatah.
“A partir de 2007, consolidado o domínio do Hamas sobre Gaza, Israel estabeleceu o bloqueio da região e um controle extremamente rígido e violento sobre ela”, diz. É por isso que Gaza tem sido descrita como uma “prisão a céu aberto”.
Enquanto os palestinos não tiverem seu Estado, eles resistirão, a não ser que sejam expulsos ou mortos. Mas Israel só aceitará um Estado palestino mediante fortíssima pressão estrangeira.
Darlan Montenegro, cientista político e professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Por conta da sua estrutura e, principalmente, da sua ação militar forte, muitos países consideram o Hamas como um grupo terrorista – que investe em ações que incitam o terror, como bombardeios, sequestros, assassinatos, etc. Outros classificam o grupo como “extremista”. Antes de dar um nome, porém, é importante considerar o contexto da sua criação e o que move as suas ações – até mesmo a visão do mundo sobre grupos como esse.
“A narrativa sionista e imperialista se apoia na ideologia orientalista, de um oriente inventado de atrasados, bárbaros, afeitos à violência por natureza, ante um ocidente de civilizados, avançados, com valores reais, o que é muito racista. O Hamas é parte da resistência palestina”, continua Soraya.
Vamos falar de genocídio?
Outro termo importante que tem definido essa guerra é “genocídio”. A Convenção sobre a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, assinada em Nova York em 9 de dezembro de 1948, traz o entendimento de que genocídio é todo ato “quer cometido em tempo de guerra, quer cometido em tempo de paz” com a intenção de “destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”, como crime contra o direito internacional, passível de punição.
O que aconteceu com os judeus durante a Segunda Guerra Mundial pode ser considerado um genocídio, assim como ao extermínio dos povos indígenas que habitavam o Brasil antes da colonização português, por exemplo.
E dá para falar de guerra, sem falar de economia e política?
Não exatamente. Segundo Darlan, o impacto de um conflito como é esse é, majoritariamente, político. Ele observa um crescimento do apoio, principalmente de pessoas mais jovens, à causa palestina justamente por conta do histórico da região, além das novas ações de guerra de Israel contra esse povo.
“O fato de o ataque do Hamas ter sido o primeiro desse tipo, resultando pela primeira vez na morte de um grande número de civis israelenses, enquanto os ataques de Israel, desde o bloqueio de Gaza, causaram a morte de milhares de civis palestinos, inclusive um grande número de crianças, ajuda a entender esse posicionamento”, explica. “A brutalidade da resposta israelense, provocando a morte de mais de dez mil civis palestinos, quase metade dos quais crianças, vai na mesma direção.”
Isso sem contar na posição estratégica da região, como citamos antes, e a importância que o mundo dá para o petróleo – o que por si só, parece uma justificativa forte o suficiente para muitos países ocidentais, como os Estados Unidos, apoiarem Israel em nem pensar duas vezes.
É possível termos paz por lá?
“A única solução possível para o conflito é a aceitação, por parte de Israel, da formação de um Estado palestino”, explica Darlan. “Ao contrário do que diz o governo israelense, não existe qualquer ameaça séria à existência de Israel. Tanto isso é verdade que o governo israelense apoiou o crescimento do Hamas, um movimento que não reconhece o direito de Israel a existir, como forma de enfraquecer o Fatah, que reconhece Israel.”
De acordo com o cientista político, Israel tomou essa decisão porque dividir os palestinos dificulta a luta deles por um Estado – e o fez também porque sabe que não existe ameaça de fato ao país, que conta com um exército poderosíssimo, além do apoio irrestrito dos EUA e de suas forças armadas.
“Enquanto os palestinos não tiverem seu Estado, eles resistirão, a não ser que sejam expulsos ou mortos. Mas Israel só aceitará um Estado palestino mediante fortíssima pressão estrangeira. Especialmente dos EUA. Sem isso, não há solução possível, porque os palestinos não têm condições concretas de forçar Israel a isso. Os palestinos precisam lembrar o mundo que existem. E a opinião pública nos países mais poderosos precisa forçar seus governos a pressionar Israel. É a única solução viável”, diz o professor.