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Beatificada pela Igreja, o martírio de Isabel Cristina foi nascer mulher

Nenhum problema em beatificar uma vítima de feminicídio, agora dizer que ela morreu por "seu anseio de amar e respeitar a Deus" já é demais

Por Isabella Otto 12 dez 2022, 15h40
Foto de Isabel Cristina após ser beatificada. Na imagem, ela está de branco, segura um ramo de folha e uma pomba branca
Divulgação/Divulgação

No último sábado (10), em Barbacena, interior de Minas Gerais, aconteceu a beatificação de Isabel Cristina Mrad Campos, no parque de exposições Senador Bias Fortes. Quem conduziu a missa solene foi dom Raymundo Damasceno Assis, cardeal emérito de Aparecida (SP). Ela foi também celebrada pelo Papa Francisco, diretamente do Vaticano, na Itália. “Que seu heroico exemplo possa estimular em particular os jovens a darem testemunho generoso de sua fé e de sua adesão ao Evangelho. Um aplauso à nova beata”, disse o líder supremo religioso.

Normalmente, para atos de beatificação, é necessário que haja a comprovação de um milagre. No caso de Isabel, contudo, não foi preciso, uma vez que a mineira foi reconhecida por um martírio.

Talvez você não saiba, mas Isabel Cristina foi beatificada 40 anos após ser vítima de um feminicídio, no dia 1º de setembro de 1982.

Na ocasião, a mineira tinha 20 anos de idade e tinha acabado de se mudar para Juiz de Fora, onde estava estudando para prestar vestibular de Medicina.

A jovem morava na época em um apartamento com o irmão e foi assassinada por Maurilio Almeida de Oliveira, prestador de serviços que havia sido contratado para ajudar com questões referentes à mudança.

Maurilio tentou estuprar Isabel, que era virgem. A estudante resistiu às tentativas de violência e o estuprador então a agrediu, a amarrou, a amordaçou e por fim lhe desferiu 15 facadas.

O ex-arcebispo de Mariana, dom Luciano Mendes de Almeida (1930-2006), foi o responsável por instalar o pedido de beatificação da mineira, em 2001. “Não raro, Isabel Cristina ajudava doentes e idosos, dando-lhes, com carinho, alimento na boca(…) Ainda hoje, há muitas pessoas que podem testemunhar sobre sua vida e que apresentaram o pedido para que a autoridade eclesiástica examinasse oficialmente suas virtudes e a coragem com que enfrentou o martírio, prova do amor e respeito que dedicava a Deus“, disse em entrevista à Folha de S. Paulo na ocasião do pedido.

Em outro momento, em carta enviada à Roma, dom Luciano disse que “o martírio veio ratificar as atitudes mais profundas de Isabel, que levaram às últimas consequências seu anseio de amar e respeitar a Deus, evitando ofendê-lo“. Papa Francisco falou recentemente algo parecido, dando a entender que Isabel foi morta “em ódio à fé, por ter defendido sua dignidade como mulher e o valor da castidade”.

É muito significativo que tenhamos a beatificação de uma mulher vítima de feminicídio, pois a história de Isabel Cristina acabou ganhando mais notoriedade com isso. Muita gente, por exemplo, só conheceu a mineira por causa da missa solene e da fala do Santo Padre.

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Contudo, é perigoso tratamos um caso de homicídio praticado em decorrência de gênero – por mais que esteja inserido no contexto religioso – como um martírio vivido por uma mulher religiosa que morreu tentando defender sua fé. O assassinato de Isabel pode ter lhe rendido uma beatificação, mas isso não é troféu nem sua morte pode ser encarada como “heroico exemplo” de nada. Isabel Cristina foi vítima de feminicídio, crime de ódio que mata no Brasil uma mártir mulher a cada sete horas, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

A violência a qual Isabel foi submetida não lhe confere coragem; apenas escancara a covardia de Maurilio Almeida de Oliveira e de todo e qualquer homem que se acha no direito de cometer um ato de violência contra a mulher. Isabel não foi morta em um “anseio de amar e respeitar a Deus”. Isabel foi morta porque nasceu e cresceu mulher em uma sociedade que diariamente contribui com o machismo e a misoginia, e que chega até mesmo a romantizar casos de abuso, agressão e feminicídio.

E sabe qual é a cereja do bolo? Isabel Cristina foi beatificada e teve sua memória preservada e homenageada de alguma forma. Maurilio Almeida, o autor do crime, também morreu, só que em 2004, depois de ser condenado a 19 aninhos de prisão – e ter cumprido apenas 13, pois conseguiu fugir da penitenciária.

Ai de nós questionar fé e religião alheia, ferramentas extremamente poderosas do ser humano, mas, olha, tem vezes que nenhuma Justiça, nem mesmo a Diviva, é digna com as mulheres.

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