Alguns de nós carregam lembranças afetivas de sentir acolhimento, sabedoria e paz em alguns espaços durante a infância. Aos 5 anos de idade, eu pouco sabia sobre este espaço, só que ele me trazia a sensação de “estar em casa”. Hoje, já adulta, revisito as mesmas emoções toda vez que entro em espaços semelhantes o que dá legitimidade àquelas sensações de antes.
Vez ou outra, minha mãe me conta que, quando era criança, compartilhava dos mesmos sentimentos. Diferente de mim, o espaço religioso foi muito mais presente em sua vida. Esse lugar é o centro da Madrinha Tunica, referência de festa de Cosme e Damião aqui na periferia de São Paulo. Toda vez que minha mãe conta histórias ela ri, emociona, se diverte e lembra o elo que que tinha com minha avó, em um cultivo de sua ancestralidade e afeto. E ah, inclusive, Dona Lourdes – minha avó – tinha uma clareza espiritual admirável. Ela honrava os seus Orixás, mas nunca deixou de respeitar outras religiões, crenças.
Apesar de muitas pessoas como eu terem experiências desse tipo, essa não é a principal visão que outras têm desses espaços, os chamados terreiros, centros de Umbanda ou Candomblé e até mesmo “Barracão”. Mas ouso dizer que são percepções baseadas a partir de um processo que tem uma conexão com uma visão preconceituosa, em que tudo aquilo que se conecta com o corpo e a cultura negra passa a ser lido como algo desumano, demonizado, inferior, ruim.
Um dos maiores exemplos é a figura de Exú, visto como um “demônio”. Mesmo que a própria religião não cultue esse tipo de crença, tal associação é feita historicamente. Exú é o Orixá mais próximo do mundo terreno, está nessa ambiguidade entre o divino e o humano. É fiel, justo e age pelo correto, mas também é responsável por “abrir os caminhos”, ou seja, é quem traz a bonança, a fartura e a prosperidade para o nosso lar.
Em 2022, a Grande Rio, escola de samba carioca, trouxe a entidade como tema em seu enredo batizado de “Fala, Majeté! Sete Chaves de Exú”. No desfile, a figura do Orixá aparece com a intenção de desmistificar as características e estereótipos negativos. E o samba é isso: uma ferramenta social para denunciar o preconceito, o racismo religioso e a intolerância.
E apesar de todo esse esforço, as religiões de matrizes africanas passam por uma lógica de extermínio, assim como a subjetividade da negritude. Logo, relacionar as cantigas, adereços, rituais e as divindades cultuadas como algo que foge do correto, é uma das formas de invisibilizar e apagar nossa cultura. Aqueles que acreditam que os terreiros são negativos e violentos estão super equivocados e reforçando um lugar social muito perigoso de reforço à diferença, viu?
Já vimos notícias de casas de Umbanda e Candomblé sendo incendiadas, imagens de entidades vandalizadas e até casos em que uma mãe é afastada da filha levar a criança no Candomblé. Tudo isso tem nome: intolerância religiosa. E eu não pude deixar de escrever sobre um tema tão importante e que diz sobre a minha vivência nesses espaços e também de outros jovens negros que encontram nele amparo emocional, mental e espiritual.
Datas sazonais, como o Dia da Intolerância Religiosa – comemorado em 21 de janeiro – pouco importam se não há um plano de ação, se não temos políticas públicas de combate à esse tipo de violência. Mas não posso deixar de me sentir esperançosa ao ver um semelhante com uma guia no pescoço, por exemplo. Ali eu vejo o sentido de continuidade dos nossos corpos, de nossa cultura. É isso que tentamos ser, quando não somos alvo de algo que nos fere.
Vestida de branco, com os pés descalços, rodeada de uma energia que me abraça e acolhe, me sinto confortável para mostrar as minhas fragilidades enquanto eu tenho uma conversa com um Preto Velho, uma das entidades que representam a generosidade, amor e humildade. Características, que, inclusive, sempre vi em minha avó e que tenho levado comigo.
E todo esse ritual nada mais é do que perpetuar o contato com os nossos: é ancestralidade!