Damares Alves, a ministra que afronta o estado laico e propaga fake news

Nomeada para o Ministério, Damares Alves distorce imagens que usa em discursos e diz que "padrão ideal da sociedade" é mulher depender do marido

Por Isabella Otto Atualizado em 11 dez 2018, 11h00 - Publicado em 10 dez 2018, 16h18

Na última quinta-feira (6/12), Damares Alves foi anunciada Ministra dos Direitos Humanos, da Família e dos Direitos da Mulher pelo futuro chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni. A advogada, que já trabalhava com Magno Malta, braço direito do eleito Presidente da República, assume papel de destaque no governo de Jair Bolsonaro. A cerimônia de posse da presidência acontece em 1º de janeiro.

Reprodução/Reprodução

As opiniões sobre Damares estão bastante divididas, dentro e fora do Congresso. Muitos parlamentares foram contra a nomeação, alegando que Bolsonaro deveria ter nomeado alguém com mandato eletivo. Essa crítica, contudo, não foi feita quando o futuro presidente nomeou homens militares para outros cargos internos – destacando a importância da figura de Damares Alves como mulher no poder.

Atualmente com 54 anos, a sergipana tem falas muito necessárias sobre a situação da criança e do adolescente no Brasil. A ministra foi abusada sexualmente aos 6 anos e é um importante nome na luta contra a pedofilia. No final dos anos 80, criou o comitê estadual do Movimento Nacional Meninas e Meninos, cuja principal função é proteger crianças que moram nas ruas. Damares também tem um importante papel na independência das mulheres pescadoras de Sergipe, com a criação de um centro social na cidade de Siriri que leva seu nome, e na socialização de jovens indígenas. Ela ainda advoga voluntariamente para mulheres de baixa renda que sofrem violência doméstica.

Mas com um currículo desses, por que Damares Alves é um nome que preocupa? Apesar de feitos e falas que são significativas, a ministra se contradiz em diversos momentos e promove reflexões em seus discursos que desvalidam suas atitudes e o que a sua figura de mulher no poder representa. Além disso, talvez o mais preocupante, vide que as opiniões dela podem ser justificadas pelo histórico familiar da sergipana e por ela ser da Bancada Evangélica, é o fato de a voz de comando do Ministério dos Direitos Humanos, da Família e dos Direitos da Mulher ser filha das fakes news.

Antes de destacar algumas falas problemáticas da ministra, vamos debater algumas das imagens usada por ela em um discurso realizado durante o 2º Encontro Mulher Viva, em 2016. Todos os prints abaixo foram retirados do vídeo em questão (que pode ser visto aqui).

1. Desmentindo fake news
Em uma mesma palestra, Damares Alves compartilha duas notícias falsas e uma de origem duvidosa. Por ter um papel de destaque e estar em cima de um palco falando para tantas pessoas, espera-se que ela tenha propriedade e saiba o que está falando. O público, então, não questiona a veracidade das informações recebidas e ovaciona Damares, que usa as imagens para chocar, causar alvoroço generalizado e impulsionar sua fala.

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A primeira imagem compartilhada é a de “uma menina se relacionando sexualmente com uma árvore”. “Essa mulher nos EUA se apaixonou por uma árvore, está namorando uma árvore e pediu para se casar com uma árvore(…) e é isso que estão dizendo para as crianças no Brasil. Que elas podem se apaixonar por tudo e por todos [fazendo referência à pansexualidade]“, disse. Além de claramente alterar o significado da pansexualidade, Damares Alves usa para ilustrar sua fala a imagem abaixo:

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Essa imagem não é da tal moça norte-americana nem retrata uma situação em que a mulher está em um “relacionamento sério” com um árvore. Na verdade, o print foi retirado de um vídeo de uma garota que, visivelmente alterada por substâncias químicas em uma festa, começa a beijar e a simular movimentos sexuais no tronco da árvore. O vídeo viralizou há alguns anos e a ministra o tirou totalmente do contexto para chocar a plateia.

Sobre a fixação da pastora com árvores, existe o registro de uma mulher mexicana que se casa com árvores, mas as cerimônias são simbólicas. A mulher em questão é uma ativista do meio ambiente que usa a união como forma de relembrar o amor e o laço eterno que temos com a natureza. O vídeo pode ser conferido abaixo:

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Damares segue seu ataque aos pansexuais dizendo que Serguei é o mais famosos panxesual do Brasil. “Ele se apaixonou e está tendo relações com uma bicicleta”, informou a pastora. Na sequência, ela novamente reforça que “estão ensinando isso para as nossas crianças”. Ao pesquisar sobre o assunto, não há qualquer informação que confirme a tal relação de amor entre o cantor e o meio de transporte. A única notícia confirmada pelo cantor é que, há alguns anos, Serguei participou do Programa do Jô e o apresentador deu a entender que ele se relacionou com uma árvore – não com uma bicicleta. Em 2012, em entrevista ao TV Fama!, Serguei esclareceu a história. “Não, árvore é sacanagem(…) Acabou, foi o fim da minha vida”, disse sobre a brincadeira de Jô Soares. A entrevista completa pode ser vista aqui.

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Ainda no mesmo discurso, Damares Alves diz que “há três meses, eu achava que conhecia o inferno… Eu trabalho com pedofilia, aborto, com crianças sendo enterradas vivas(…) Tá vendo esse Facebook aqui? Esse cara, só pra fazer uma foto no perfil dele, ele pegou um bebê e estrangulou até ficar roxo.” Para ilustrar a fala, ela utilizou a imagens abaixo, dando a entender que o bebê em questão foi enterrado vivo:

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Não existe qualquer fonte confiável que valide a informação. Em 2016, o blog 1poquimdicada.blogspot.com publicou uma nota explicando o caso: “bebê recém-nascido é enterrado vivo por homem revoltado com a traição da mulher”. No texto, contudo, nenhuma fonte é citada, não existe nenhum dado que comprove o fato e o relacione com a imagem. Também em 2016, o blog buzzsyou.blogspot.com postou a mesma imagem dizendo que se trata de um bebê que foi queimado vivo em um cemitério da China. Mais uma vez, o texto não cita fontes nem dá dados precisos e confiáveis que nos faça crer que a história é real e não um “conto de WhatsApp”.

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2. Desconhece a realidade em que vive
Em pleno 2018, espera-se que as pessoas que tenham o mínimo de acesso à energia elétrica estejam por dentro das corriqueiras discussões sobre orientação sexual e identidade de gênero que ocorrem na mídia. Damares Alves parece não estar a par disso. A pastora se choca ao falar sobre pessoas “cis” e diz que “no Brasil, existem vários tipos de identidade. A mais engraçada agora que estão falando para os nossos filhos é a cis sexual“. Na verdade, a descrição “cis” é utilizada para esclarecer que a pessoa em questão se identifica com o gênero descrito em sua certidão de nascimento e não é “trans”. O prefixo “cis” vem do Latim e significa “no mesmo lado de”. É o contrário de “trans”. Não é novidade, não é algo “de hoje”. O termo já vem sendo usado há alguns bons anos

“Estão dizendo para as crianças que elas têm 70 opções de identidade(…) Sabe qual é a identidade mais famosa que estão dizendo para nossos filhos na sala de aula? Que eles podem ser pansexual(…) É isso que estão dizendo para as crianças no Brasil: que elas podem se apaixonar por tudo e por todos. Isso é confundir nossas crianças“, disse a pastora em palestra. Vamos à descrição de pansexualidade? “A pansexualidade, onissexualidade ou omnissexualidade é caracterizada pela atração sexual ou amorosa entre pessoas, independentemente do sexo ou identidade de gênero”. A explicação é simples e desmistifica já de cara três falas de Damares: (1) pansexualidade não é se relacionar com tudo e com todos, inclusive com árvores e/ou animais, (2) consequentemente, não estão ensinando isso para as crianças na escola e (3) vários nomes podem ser usados para se referir a uma mesma coisa. Logo, é preciso ficar atento às tais “70 opções de identidade”. Esse número não existe e é uma fake news.

3. Ameaça ao estado laico
Em 1890, o Brasil tornou-se um estado laico com a aprovação do decreto nº 119-A, de 07/01/1890, de autoria de Ruy Barbosa. Na prática, contudo, o que vemos são imagens de Jesus Cristo na cruz penduradas nas salas do Congresso, autoridades no poder governando “em nome de Deus” e agora uma pastora assumindo o cargo de ministra dos Direitos Humanos. Cada um tem a sua crença e ela deve ser respeitada. Tolerância religiosa é algo importante e necessário. Contudo, essa crença não deveria interferir em assuntos governamentais, uma vez que o estado é laico – caso contrário, esse decreto torna-se questionável.

Quer um exemplo de como isso pode interferir na prática? Veja essa frase de Damares, dita durante um programa exibido pela emissora TV ADNP: “no dia que acharem que todas as nossas crianças estão malucas com a ideologia de gênero, menino achando que nasceu menina, menina achando que nasceu menino, a Igreja Evangélica vai abrir as portas e vai mostrar para o Brasil os joás que estávamos cuidando, nossos meninos prontos para governar sobre essa Terra“. Por ser um canal gospel, é compreensível a fala da advogada. Mas será que, como ministra, à frente de um estado laico, ela vai pensar duas vezes antes de impor a religião Evangélica como a grande salvadora? Mais uma vez, as crenças precisam ser respeitadas – e nós respeitamos o posicionamento de Damares -, mas elas não podem ser impostas, principalmente em um país grande e culturalmente diverso como o Brasil.

O aborto é outra questão polêmica e um exemplo de como crenças religiosas podem ser decisivas na hora de uma pessoa decidir se é contra ou a favor da prática. Apesar de ser a favor das mulheres, Damares Alves é contra o aborto e contra ativistas feministas. “Queremos uma nação que as mulheres sejam respeitadas, mas que não vão para a rua rasgar a roupa e dizer: ‘Meu corpo, minhas regras‘” e “eu quero vida, eu quero vida saudável(…) eu quero família saudável” são frases que já foram ditadas pela ministra dos Direitos da Mulheres.

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Por se tratar de um estado laico, a legalização do aborto não deveria ser discutida em um plebiscito, como aconteceu recentemente na Irlanda, por exemplo? Será que com uma mulher no poder com um posicionamento tão contrário ao aborto como Damares Alves isso se torna sequer cogitável? O aborto no Brasil é um caso de saúde pública e deveria ser tratado como tal. Em pronunciamento dado após nomeação ao cargo, Damares opinou dizendo que “dá para salvar as duas vidas”. (O vídeo completo pode ser conferido aqui)

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4. A favor da família, mas com ressalvas
Quando Damares Alves fala sobre “família saudável”, ela se refere também ao conceito de “família tradicional brasileira”: um casal heteroafetivo com filhos. Qualquer outro relacionamento que fuja da heteronormatividade é marginalizado pela ministra.

Questões culturais e religiosas explicam esse posicionamento da pastora Damares, mas será que uma pessoa com uma opinião tão contrária e radical a todos que fogem do padrão social hétero não é uma ameaça ao combate à homofobia? Vale lembrar que o Brasil é o país que mais mata gays, transexuais e travestis no mundo. Os Direitos Humanos não são para todos?

Confira abaixo mais frases* que foram ditas pela ministra Damares Alves que valem a reflexão:
– “Me preocupo com a ausência da mulher de casa. Hoje, a mulher tem estado muito fora de casa. Costumo brincar como eu gostaria de estar em casa toda a tarde, numa rede, e meu marido ralando muito, muito, muito para me sustentar e me encher de joias e presentes. Esse seria o padrão ideal da sociedade. Mas não é possível. Temos que ir para o mercado de trabalho”,

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– “O que a gente tem visto hoje são as feministas levantando uma guerra entre homens e mulheres.”

– “Dá pra gente consertar algumas bobagens que os homens fazem.”

– “Dá pra gente ainda seguir o padrão cristão que foi instituído para as nossas vidas.”

– “Hoje os pais dão celular para uma criança de 7 anos com acesso ilimitado à internet(…) A mãe tem um papel importante nessa história. A carreira pode esperar.”

– “A desconstrução da heteronormatividade. Deixa eu traduzir: a destruição da heteronormatividade. Deixa eu falar mais claro: a destruição da família tradicional.”

– “Quando uma escola leva para uma criança de 10 anos camisinha, quando chega na sala de aula com um pênis de borracha, ensinando crianças de 10 anos a colocar camisinha e a fazer sexo.”

– “Nós temos uma geração inteira falando de ideologia de gênero(…) Quando eles chegam à adolescência, eles ficam confusos e se cortam(…)”

– “Estão dizendo para as crianças que elas têm 70 opções de identidade(…) Sabe qual é a identidade mais famosa que estão dizendo para nossos filhos na sala de aula? Que eles podem ser pansexual(…) É isso que estão dizendo para as crianças no Brasil: que elas podem se apaixonar por tudo e por todos. Isso é confundir nossas crianças.”

– “Essa nação está de cabeça para baixo. Estão falando de ideologia de gênero na escola(…) Estão deixando as nossas crianças confusas no Brasil.”

 

*Todas as frases foram retiradas dos vídeos a seguir:
– MINISTRAR KIDS – A FAMÍLIA E A INFLUÊNCIA DO INIMIGO – Dra DAMARES ALVES (https://www.youtube.com/watch?v=XAMnViFNcus)

– Desconstrução da família tradicional – Pra. Damares Alves (https://www.youtube.com/watch?v=TuwFBb0W-eo)

– A ideologia de gênero no Brasil (https://www.youtube.com/watch?v=ShcuGFpjVLs)

– Você se corta? Dor na alma com Dra. Damares Alves (https://www.youtube.com/watch?v=qPVSsuOe2Do)

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